domingo, 29 de setembro de 2013

4. Prisioneiro



A porta estava aberta. Entraram num quarto pequeno, escuro e sujo, quase vazio. Só havia duas cadeiras, uma mesa e uma cama pequena. Num canto, no chão, havia também um telefone. Funcionaria? O quarto havia uma janela e duas portas mais. Cheirava a mofo. O Maestro abriu uma das portas e disse ao Joãozinho para entrar. Ele obedeceu e quando entrou, o homem fechou a porta à chave. O Joãozinho ficou sozinho.
- Fica tranquilo, disse o Maestro. De aqui não escapas.
Tinha razão. O quarto era ainda mais pequeno do que o outro e não tinha janelas. Só havia uma cama pequena desarrumada, e uma bandeja com um copo e um prato vazios no chão. Parece que ele não era o primeiro residente do lugar.
 Arrumou a cama e sentou-se. Estava muito frio e não havia calefacção. O coitadinho começou a tiritar. Cobriu-se com o cobertor, mas mesmo assim não conseguia aquecer-se. Que horas seriam? Se agora estivesse em casa, já estaria na sua cama, teria bebido um copo de leite quente e a sua mãezinha estaria a contar-lhe uma história engraçada como só ela sabia contar. Ouviou a outra porta do lugar abrir. A porta depois fechou e no quarto contíguo houve vozes. Obviamente, o Maestro não estava sozinho. O Passarinho teria voltado. Procurou perceber o que estavam a dizer, mas estavam a falar baixo e não conseguiu perceber nada.
Mas, pronto os dois homens começaram a discutir e o tom da conversa subiu. O Joãozinho pegou a orelha na porta para poder ouvir melhor.
- Como que não tem cliente? perguntava o Maestro.
- Disse-me que ultimamente não há mercado para crianças tão grandes.
- Como que não há mercado? O menino não é tão grande. Não terá mais de cinco anos.
- Mesmo assim, disse que agora só se vendem bebés de alguns meses e não crianças que vão à escola. Aliás, há também o mercado de China e é muito difícil combater os chineses, disse.
- Sabes o que digo eu? Que o tipo está a brincar connosco. Não nos disse no outro dia que se conhecíamos algum menino, porque tinha um cliente exigente que não podia esperar? Pois, onde está aquele cliente? Sumiu?
- Podia ter mentido...
- Ou podia estar à procura de outros fornecedores, mais baratos.
- Mais baratos do que nós não há, seguro.
- E o chineses? Porquê será que se referiu aos chineses? Achas que foi pura casualidade?
- Sei lá...
- Sabes lá, sabes lá, está certo que não foi. Pensa nisto: na China, cada dia nacem miles de bebés. Aqui, quantos bebés nacem por dia?
- Sim, parece lógico, mas mesmo assim penso que o Raposo somente perdeu o cliente...
- Não sejas tão estúpido, Passarinho. O Raposo quer sair à francesa, mas não sabe bem com quem se mete. Ele também tem patrão. Ó Passarinho, nem podes imaginar aonde posso chegar. Vou dar ao nosso amigo uma ensinadela que nunca vai esquecer, descuida-te.
- E o que vamos fazer com o menino?
- Procuro eu o cliente.
- Tu?
- Sim, não achas que sou capaz? Mas, antes de tudo, quero saber uma coisa. Ó, tu, ranhoso!
O Joãozinho apanhou um susto! O Maestro já estava atrás da porta. O nosso amigo quase ficou paralisado. Por pouco não o apanharam com a orelha pegada na porta!
- Diz-me lá, disse o Maestro quando abriu a porta. Quantos anos tens?
Que devia responder? A sua mãe dizia-lhe sempre que devia dizer a verdade, mas aqueles homens, como parecia, queriam vendê-lo e, como disse o Maestro, não havia mercado para crianças grandes. Então, decidiu dizer uma mentira para se salvar.
- Não ouves? perguntou o Maestro. Perguntei-te uma coisa.
- Tenho dez anos, disse ele porque dez anos lhe parecia uma idade bastante grande.
- Não digas parvoíces. Não pareces ter mais de cinco.
O Joãozinho pensou insistir na sua mentira.
- Tenho dez anos, repetiu. Vou cumprir dez dentro de três meses.
- Achas que és tão esperto? perguntou o Maestro, bocejando um bocadinho. Pois sei eu uma maneira de saber a tua idade. E sabes como? Os teus dentes não mentem, miudo. Vão dizer-me toda a verdade sobre a tua idade. Abre a boca para eu ver.
- Pois, disse o Joãozinho, a verdade é que tenho oito anos.
- Então, já começaram os saldos? Mesmo assim, abre a boca.
Agarrou-lhe a cabeça e abriu-lhe a boca com as suas mãos que eram muito fortes.
- Pois sim, disse com prazer. Os dentes novos de frente já aparecidos, mas ainda não completamente. Cinco ou seis anos, ao máximo.
O Joãozinho ficou triste, mas, por outro lado, aprendeu uma coisa: que além dos cavalos, os dentes servem também para calcular a idade das crianças pequenas.
O Maestro saíu e fechou a porta outra vez.
- Amanhã vou procurar um cliente, disse ao Passarinho.
O Joãozinho ficou sozinho outra vez, mas foi para uns minutos só. A porta abriu outra vez e apareceu o Maestro, com uma sandes de fiambre e um copo de leite nas mãos.
- Toma, disse-lhe. Não queremos deixar-te morrer de fome.
- Tenho frio, disse o Joãozinho.
O Maestro suspirou.
- Quando digo eu que as crianças são um mau deste mundo tenho razão. Filhos mimados, todos! «Tenho frio, tenho fome, quero isto, quero o outro...» E eu não tenho muita paciência.
O Passarinho apareceu na porta com um cobertor nas mãos.
- E eis o anjo bom, já na porta, com um cobertor para o nosso príncipe não sentir frio! Tu não és homem!
O Maestro, zangado como era, saíu do quarto e o Passarinho deixou o cobertor sobre a cama. «Boa noite» disse a voz baixa e saíu ele também. Depois, fechou a porta à chave.
- E não faças barulho, ouviu-se a voz do Maestro, ou sei eu bem como fazer-te calar.
O Joãozinho ficou sozinho, e desta vez seria para toda a noite. Bebeu o leite, que era frio, e comeu a sandes, que não era muito fresca. Depois, deitou-se na cama e cobriu-se com os dois cobertores. Menos mal que havia luz no quarto. Assim, pelo menos, havia uma fonte de calor.
Foi difícil acalmar. Era a primeira vez que ficava sozinho de noite e a presença dos dois homens tão perto dele não era nada confortante. Aliás, tinha medo dos ratos. E se naquele lugar, que era tão sujo, havia ratos? Oxalá não houvesse. O Cristovão Colombo, alcunha do Cristovão Calumba, que era aluno da segunda e que tinha andado pelo mundo, dizia que os ratos podem comer a cara de uma pessoa se têm fome. O Joãozinho cobriu a sua cabeça com os cobertores. Assim, nenhum rato podia comer-lhe a cara. Foi muito tarde quando conseguiu dormir.

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

3. Entre Maestro e Passarinho



Foram para um carro que estava estacionado ao lado de um contentor de lixo. O carro parecia vazio, mas quando o homem abriu a porta, o Joãozinho viu que havia condutor.
- Entra, disse o homem e empurrou o menino para dentro do carro. Entra, repetiu.
- Ó, Maestro, tardaste muito, disse o condutor.
- Achas que é fácil? perguntou-o o homem. Pára com as brincadeiras. Anda, vamos, que não quero perder mais tempo.
- Este é o menino?
Olhou-o através do espelho.
- Parece fraco, adicionou.
- Tu não te metas nisto. O teu trabalho é conduzir. Anda, disse o Maestro.
                 Parecia zangado.
- Tu és quem sabe melhor, sim senhor, disse o condutor. Mas não gosto deste menino. Tenho certeza que vai levar-nos problemas, ou o meu nome não é Passarinho.
- A ti não te pagam para pensar.
- Só disse...
- E não te pagam para dizer a tua opinião. Conduz!
O Passarinho arrancou o motor e começaram a correr pelas ruas da cidade. Todo este tempo o Joãozinho estava a observar o Passarinho. E o Passarinho era tudo o contrário daquilo que significava o seu nome. Era gordo, calvo e tinha grandes bigodes. Embora fosse inverno, usava uma camisa de manga curta e o seu braço desnudo era cheio de cabelos. Tinha também um dente de oiro e usava um anel grande no dedo pequeno.
O Joãozinho, que era um menino inteligente, pensou que devia procurar memorizar o caminho e, então, deu atenção às imagens da cidade que passavam rapidamente frente aos seus olhos.
Mas não era nada fácil. Primeiro, era já noite e as ruas eram muito escuras. Segundo, o menino não conhecia a cidade e não podia reconhecer nada. Terceiro, era bastante tarde e o miudo tinha vontade de dormir. Porém, decidiu combater o sono e procurou manter os seus olhos bem abertos.
Passaram por ruas onde as casas pareciam iguais. Eram casas velhas, com azulejos nas façadas, mas sem nada especial. Passaram fora de uma igreja, e foi então que o Joãozinho deixou a sua tarefa durante unos minutos para rezar. Pediu a Deus para o salvar e para proteger a sua mãe, que já agora estaria como louca pela preocupação. Naquele momento ouviram-se os sinos da igreja e o nosso amigo, como normalmente fazemos todos em tais casos, pensou que isto era um sinal que mostrava que Deus tinha ouvido a sua reza. Claro, ninguém pode garantir que as coisas eram assim, mas ele sentiu-se melhor.
O carro corria por ruas escuras e tranquilas. O Maestro não olhava fora nem falava, tinha toda a sua atenção virada para o Joãozinho.
- Atenção, disse de repente ao Passarinho. Corre, mas há limites de velocidade. Ou queres que nos apanhe a polícia das estradas?
- Perdão patrão, disse o Passarinho. Distraí-me. Estava a pensar na minha mulher. Disse que me vai deixar.
- Não me digas! disse o Maestro, mas era evidente que estava a falar com ironia, quer dizer que falava como se se importasse, mas era evidente que não se importava nada. Escuta, filho, tu és quem devia ter terminado este matrimónio. A tua vida não tem nada a ver com a vida de uma pessoa de família. A família faz mal a pessoas como tu e como eu, porque põe limites e a gente como nós precisa de libertade absoluta para viver. Menos mal, então, que a tua mulher tomou a decisão certa, já que tu evidentemente não podias. Tu, tranquilo, disse ao Joãozinho, que tinha mexido um bocadinho.
- É fácil falar assim quando uma pessoa não tem filhos. Mas eu tenho um filho, esqueceste? Se ela me deixar, vai levar o meu filho com ela, e não vou ver o meu pequeno Tomás nunca mais.
- E que queres que faça? Preferes ter o teu filho contigo? Que tipo de vida vai ter? Que tipo de pessoa vai ser? Ou pensas que tu e eu somos pessoas exemplares para a sociedade? Deixa o menino. Talvez tenha mais sorte longe de ti.
Ficou pensativo.
- Olha, eu também podia ter família. Não me faltaram as oportunidades. Porém preferi viver sozinho para não levar mais gente ao chamado «mau caminho». Tu foste débil, mas agora tens a oportunidade de arranjar tudo. Deixa a mulher. Finge que nunca existiu. Finge que o filho não é teu. É melhor para ele. Para ti também.
- E agora este trabalho, disse o Passarinho. Na próxima vez, por favor, escolhe outra vítima. Um homem ou uma mulher. Não mais crianças. Dói-me o coração.
- Tu não és homem, disse o Maestro e cuspiu no ar.
A conversa terminou. O Joãozinho sentiu compaixão para o Passarinho. Em fim, o homem tinha coração. Encuanto que o outro... De repente viu a sua mãe, que lhe estava a dizer «Todos têm coração, meu amor. Nunca te esqueças». Por pouco chamou-a, mas deu conta que a sua mãe estava na sua imaginação e parou. Uma lágrima caíu na sua face.
- Isto é o que faltava! disse o Maestro. Pára de chorar, as lágrimas não te vão salvar. Ó, Passarinho, olho na rua, desgraçado! Queres matar-nos?
Silêncio caíu dentro do carro. O Joãozinho perdeu toda esperança de voltar a ver a sua mãe. Já tinha passado muita hora desde quando tinham partido. Parecia que estavam a chegar às fronteiras do país.
- Por fim, disse o Maestro de repente. Pensei que não chegávamos nunca.
Devagar e com os farois apagados, entraram numa garagem. O Maestro saíu do carro e disse ao Joãozinho para ele sair também. O Passarinho ficou dentro. Disse que ia comprar alguma coisa para comerem.
- Compra alguma cerveja também, disse-lhe o Maestro e empurrou o menino para uma porta de metal.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

2. O homem do rabo de cavalo



Como foi isto possível ninguém sabe dizer exactamente. Somente podemos imaginar. O mais provável foi que em algum momento o Joãozinho deixasse a mão da sua mãe sem dar conta, quando estava a olhar, maravilhado, por todo o lado, e depois com toda esa multidão que ia e vinha é também provável que não lhe fosse possível encontrar a mão materna outra vez. Olhou por cá, olhou por lá, chamou o nome dela, mas não havia nem rasto da Florida. A verdade é, claro, que a Florida não desapareceu, mas não estava no posto certo, e por isto foi que nem ela nem ele podiam encontrar-se.
Os olhos do Joãozinho enceiaram-se de lágrimas e a sua visão tornou-se turva, piorando a situação. Muito pronto, o nosso amigo perdeu toda esperança de encontrar a sua mãe. Foi então quando apareceu o homem do rabo de cavalo.
- O quê está a acontecer, menino? perguntou sorrindo para ele.
- Perdi – a – mi – nha – mã – ãe, respondeu ele entre soluços.
- Já sabia eu que eras tu, disse o homem. A tua mãe mandou-me para te levar a ela. Está aqui perto, numa loja de brinquedos, adicionou mostrando com a sua mão direita. Tinha um anel de oiro no dedo pequeno. Ora, deixa de chorar. Vamos para ela. Vai.
O Joãozinho secou os seus olhos e olhou para o homem. Era alto, moreno e muito magro, e tinha os olhos pequenos e muito escuros. Usava óculos redondos e tinha o cabelo comprido, como já dissemos. Usava calças de ganga e botas de pele. Tinha também algumas rugas ao lado da boca e ao lado dos olhos.
 Não parecia ser uma pessoa má. Pelo contrário, era simpático e parecia ser muito sério, talvez por causa dos óculos redondos. O homem sorriu outra vez. Os seus dentes eram brancos. Estendeu a sua mão do anel para o Joãozinho a pegar.
- Pega na minha mão, disse, para não te perderes na multidão.
O anel estava a reflectir as luzes acesas que estavam por cima deles.
Ora vocês já estão a gritar para ele não pegar na mão do homem, porque são meninos espertos e sabem muito bem que um menino não deve fiar de nenhuma pessoa que não conhece bem. Mas o Joãozinho, coitadinho, estava tão preocupado pela sua mãe que não podia pensar claramente.
Então, estendeu a sua mãozinha e pegou na mão do homem do rabo de cavalo. Era uma mão áspera e um bocadinho fria. O homem apertou a mão do Joãozinho e começou a andar com passos grandes. O Joãozinho começou a correr, para poder seguí-lo. Viu as lojas que passavam frente aos seus olhos e a gente que se abria para os dois poderem passar, e a música do local estava a misturar-se com o barulho da gente, e o nosso amigo pequeno sentiu-se confundido. Mas não disse nada. Só pensava na sua mãe, que seguramente estaria muito preocupada por ele.
- Aonde vamos? só teve tempo para perguntar.
- Não te disse? À tua mãe.
Um guarda gordo estava na entrada.
- Vem por aqui, disse o homem ao Joãozinho e puxou-o para a direcção oposta.
Já estavam fora do centro comercial. Mas, onde estava a sua mãe? Teria ido tão longe? O homem repetia continuamente «por aqui» e continuava a andar depressa. Passaram muitas lojas, alguns cafés e uma loja de brinquedos e entraram numa rua estreita sem muitas luzes. Não havia muita gente lá.
O Joãozinho começou a pensar mais claramente. A sua mãe não gostava dos lugares escuros, e muito mais quando era de noite. Aliás, não havia lojas naquela zona. Seria que aquele homem lhe tivesse mentido? Procurou libertar-se mas a mão do homem era como uma tenaz.
- Largue-me! disse, mas o homem nem reparou. Largue-me! repetiu.
Foi então quando o homem o ouviu.
- Mas já chegamos, disse. A loja fica a dois passos de aqui.
- É mentira! gritou então o Joãozinho. A minha mãe não está aqui. O senhor mentiu!
O homem parou e voltou para ele, sem soltar a sua mãozinha.
- Olha aqui, menino, disse e a sua voz tornou-se rouca, vem comigo como menino bom, ou sei eu muito bem como fazer-te vir comigo sem mais. Estamos?
O Joãozinho sentiu muito medo do homem, talvez por causa da sua voz, que parecia vir do estômago da terra, se a terra tivesse estômago. Sentiu muito mais medo do que sentiria se ouvisse vinte trovões juntos.
                       - Mexe-te, disse o homem.

domingo, 22 de setembro de 2013

1. Era uma vez



Era uma vez uma menina muito bonita e muito ingénua, que se chamava Florida Pestana. A Florida era tão bonita que parecia como uma flor, cheia de perfumes. Aliás, por pura coincidência, a Florida tinha umas pestanas longuíssimas, como fios de seda. Ora, muitos vão pensar que a Florida, sendo tão bonita, era uma pessoa muito sortuda, mas, infelizmente não era assim. Porque a Florida perdeu os seus pais quando era muito pequena, e quando dizemos «perdeu» na verdade queremos dizer que morreram, mas não o dizemos para os mais pequenos não ficarem muito tristes. Mas vocês já são grandes, alguns já vão à escola, por isso podem ouvir a verdade toda.
Então, os pais da Florida morreram, já se sabe, e a pobre menina ficou sem família. A vida é dura e difícil para as pessoas que estão sozinhas no mundo, isto também é um facto, e a Florida teve uma vida difícil, mas conseguiu crescer e tornar-se uma mulher muito amável.
Foi então quando a Florida conheceu o João, um jovem muito bonito também, loiro como o trigo em Júnio e agradável como um agasalho nos dias frios de Janeiro. A Florida apaixonou-se por ele e ele prometeu-lhe uma vida feliz, coisa que ninguém conhece bastante para saber como é. Fizeram muitas coisas os dois juntos e um dia nebuloso a Florida descobriu que estava grávida. Isto é quando uma mulher tem um bebé dentro da barriga. Porque muitos dizem que a cegonha traz os bebés, que parcialmente podia estar certo, dado que, metaforicamente, um pássaro traz os bebés (podem buscar a palavra «metaforicamente» num dicionário), e outros dizem que os bebés vêm da França, coisa que certamente não está certa, dado que a França exporta muitos productos mas não exporta bebés.
A Florida ficou muito surpreendida quando viu que estava grávida, porque ela acreditava também na história da cegonha, e não era como vocês que sabem muito bem que os bebés vêm da barriga da mãe. A pobre menina não sabia o qué fazer mas achou boa ideia informar o João sobre o assunto.
Foi então quando o João lembrou que tinha de fazer uma viagem urgente à África do Sul por assuntos familiares, mas prometeu-lhe que ia voltar pronto. A Florida despediu-se de ele cheia de lágrimas e de esperanças e passou duas semanas encerrada no seu quarto, lendo as cartas de amor que o João lhe tinha escrito.
Mas o João não voltou. E os meses passavam e a barriga da Florida crescia como um balão. E foi daquele balão que veio no mundo (neste mundo, quer dizer) o filho da Florida. No dia 13 de Abril a Florida tornou-se mãe e o João tornou-se filho dela. Porque a menina ingénua ainda amava o João e, para o ter de alguma maneira perto dela, deu o nome dele ao seu filho. Mas, infelizmente, não sabia o apelido do pai do Joãozinho, por isto foi que o João só tinha um apelido e este era o apelido da Florida, quer dizer Pestana.
Ora muitos vão dizer que a aventura do pequeno João Pestana começa aqui, dado que cada pessoa que nasce enfrenta um desafio, mas eu, já conhecendo a história, digo-vos que a grande aventura dele ainda não começou. Tenham paciência, então, porque, como o provérbio diz, saber esperar é uma grande virtude.
O filho da Florida, então, se chamou João Pestana e era um menino excepcional. Do pai tinha o cabelo de trigo e da mãe tinha o coração de oiro. Mas o pequeno João tinha também um poder propriamente seu: tinha uma voz muito doce e quando falava provocava sono às pessoas que o ouviam. Naturalmente, ninguém conhecia este poder quando ele era muito pequeno, porque todo o mundo sabe que os bebés não falam. Nem sequer ele o sabia.
O Joãozinho era um bebé muito tranquilo e gostava muito de dormir. Às vezes sonhava com caramelos, casinhas de açúcar e flores de chocolate e, então, no seu rosto rosado aparecia um sorriso grande. Às vezes sonhava com tempestades e céus cinzentos, escuros, e acordava chorando. Porque o Joãozinho tinha medo das tempestades e dos trovões. Quando o tempo era muito mau e o João chorava por causa dos trovões, a Florida secava-lhe os olhos, explicando-lhe que não devia ter medo dos trovões porque são o tambor do céu e que quando se ouve o tambor do céu é porque os anjos têm festa e dançam.
Os dois viviam com muita pobreza mas com muito amor também. Quando não tinham bastante para comer, ela fingia que já tinha comido, para deixar ao seu filho a pouca comida que havia. Bordava a ropa dele com jotas de várias cores, cantava-lhe cançãozinhas infantis que ela mesma inventava por ele, contava-lhe contos de princesas encantadas e dragões de hálito ardente, tudo o que ela podia imaginar. A pobrezinha, procurava dar-lhe toda a felicidade que ela nunca tinha experimentado.
Pronto, o Joãozinho proferiu as suas primeiras palavrinhas, pois começou a dar os seus primeiros passos, primeiro como um cãozinho, gatinhando com grande velocidade por todo o lado, pois como uma pessoa de verdade, com os pés, baloiçando no início e gradualmente ganhando confidência.
A Florida era muito feliz mesmo, e cada dia acordava cheia de curiosidade para ver qual seria a próxima coisa engraçada que o seu filhinho fazia. Como cada mãe respeitável, queria o melhor para ele e procurava ajudá-lo para no futuro ele ter uma vida mais fácil do que a vida dela.
Por isto, quando o Joãozinho chegou à idade precisa, a sua mãe inscreveu-o na escola do bairro. Porque, como se diz, a educação abre portas, quer dizer que quando uma pessoa estuda, tem mais oportunidades na vida.
O primeiro dia de escola foi muito difícil para os dois. O Joãozinho chorava levemente, e o seu rosto era vermelho por chorar tanto. A Florida continha-se porque era a maior e os maiores (isto o digo porque muitos não o sabem), mesmo quando parecem que não sentem nada só o fazem para não parecer débeis. A pobrezinha, sorria por fora mas, por dentro chorava sem parar.
O Joãozinho sentia-se sozinho porque não conhecia ninguém. Escolhiu uma carteira num canto da aula, sentou-se e apoiou a sua cabeçinha loira com ambas as suas mãos, olhando melancolicamente para o chão. Imaginava que os azulejos do chão eram como um tabuleiro de xadrez, e começou a imaginar os peões alegres correndo por todo o lado, os bispos austeros praticando artes marciais, as torres fortes, o rei bondoso, a rainha poderosa e os cavalos imprevisíveis galopando entre as carteiras, sem cavaleiros, relinchando de vez em quando.
A situação tornou-se muito divertida quando começaram as batalhas entre os peões. Logo, quando o rei foi morto por um peão atrevido, a rainha não mostrou nenhum sinal de preocupação por ele, e o Joãozinho ficou muito estranhado. A batalha continuava diante dos seus olhos, quando o nosso amigo ouviu que a rainha estava a chamá-lo pelo seu nome. Mas, como podia a rainha saber o nome dele? Que mistério! Os peões começaram a rir-se. Foi então quando o Joãozinho abriu os olhos e viu que a professora estava à sua frente, olhando-o e chamando-o pelo seu nome. Os outros alunos estavam a rir-se, exactamente como os peões. O quê tinha acontecido?
O coitadinho tinha adormecido sem dar conta, e quando a professora entrou na aula, ele já estava a dormir, com a sua cabeçinha loira apoiada sobre a carteira. Que vergonha! Um homem já, de 6 anos de idade, a dormir durante a aula! Tornou-se vermelho como uma papoila. Os outros alunos não paravam de rir. Sentiu vontade de chorar mas, já o dissemos, era um homem, tinha 6 anos. Preferiu sofrir por dentro.
A professora, que era muito simpática e gostava muito do seu trabalho, disse aos alunos para deixarem de rir e deu ao Joãozinho as boas-vindas. Mas, quando o chamou pelo seu nome inteiro, os alunos desataram a rir outra vez e, para falar a verdade, desta vez riram mais. Até que começaram a gritar ritmicamente «João Pestá-na! João Pestá-na! João Pestá-na!». Porque este nome, quer dizer o nome dele, concordava com o episódio anterior. Foi assim como o nome João Pestana em vez de ser somente um nome, começou a ser nome e apodo ao mesmo tempo. E não havia maneira de mudar a situação.
Muito pronto, toda a escola sabia dele e do episódio e, muitas vezes, alunos de outras aulas que ele não conhecia, chamavam-no pelo seu nome inteiro, rindo e mostrando-o com o dedo índice aos outros alunos, coisa que não é sinal de pessoa educada. Naqueles momentos, o pobre menino sentia-se muito mal e, como era tímido, ia embora e escondia-se no retrete até o intervalo terminar.
A situação piorou mais tarde, quando o rumor que o João Pestana não tinha pai correu por toda a escola. Isto, como sabemos nós, não era verdade, porque já sabemos que o pai do Joaõzinho era o João da África do Sul e, mesmo se não o soubéssemos, sabemos muito bem que todas as crianças têm pai e mãe, só que alguns pais e mães vivem longe ou já não vivem mais. Aliás, segundo a igreja, todos somos irmãos porque somos filhos de Deus, não é assim?
Mas os alunos da escola talvez não o soubéssem. Pouco a pouco, começaram a chamá-lo «bastardo». O Joãozinho não sabia o que significava esta palavra, nem tinha dicionário em casa para a buscar, mas sentiu que não era coisa boa. Se vocês buscarem a palavra no dicionário, vão ver que tinha razão. É uma palavra muito cruel para ser dirigida a qualquer pessoa, muito menos a uma criança tão frágil como ele. Eu, pessoalmente, não a tenho usado nunca. A única razão pela qual me referi a ela, foi para vos avisar. Porque para evitar um perigo é preciso saber qual é o perigo. Agora que vocês conhecem esta palavra, tenho a certeza que, como meninos bem educados, não a vão usar nunca.
O Joãozinho sentia muito infeliz, mas não dizia nada à sua mãe porque não queria dar-lhe nenhum desgosto. Felizmente, o intervalo não durava muito, e a maior parte do dia passava-a na aula, aprendendo muitas coisas que nem sequer imaginava. Pouco a pouco aprendeu coisas como o alfabeto, os números, os animais, as árvores, e quanto mais aprendia mais ainda lhe faltava para aprender. Porque os conhecimentos não terminam nunca. E se vocês podem guardar um segredo, ei-lo: ninguém conhece tudo, nem sequer os nossos pais. Fiquem também a saber que vale a pena aprender mais coisas. Mas não vou dizer mais porque já disse mais do que devia. Há coisas que vocês têm de descobrir sozinhos. Sinto muito.
O Joãozinho gostava muito da escola e estudava sempre. Não houve nem sequer um dia que ele foi à escola sem ter estudado nada, como fazem muitos meninos e meninas. Mas havia um problema. Quando o nosso amigo abria a boca e começava a falar, todos aqueles que o ouviam adormeciam, incluso a professora. Um dia a professora pediu-lhe para ler uma frase que estava escrita no quadro-negro e todos dormiram por dez minutos. Um outro dia a professora pediu-lhe para falar sobre o que tinham aprendido no dia anterior, e todos dormiram até ao intervalo seguinte. Depois disso, a professora nunca mais lhe pediu para falar na aula, embora ele, como aluno bom que era, levantasse o dedo índice pedindo licença para falar. Mas, mesmo assim, o menino não deixou de estudar. Enfim.
A Florida estava muito orgulhosa do seu filhinho, como todas as mães o são, e esperava algum dia poder oferecer-lhe muitos presentes. Mas, já o dissemos, era muito pobre e não podia comprar-lhe quase nada. Porém, isto não significa que não pudesse dar-lhe um presente estupendo. Porque, como disse uma pessoa muito erudita, as coisas mais caras são aquelas que não custam nada. Assím, um dia de Dezembro, com o Natal aproximando e as montras encheando-se com decorações natalícias, a Florida foi à escola do Joãozinho, e quando ele saíu, ela abraçou-o e disse-lhe que iam passar o resto do dia juntos. Que presente tão caro! Que alegria tão grande! O Joãozinho estava muito contente mesmo.
Caminharam pelas ruas da cidade, olhando ora aqui ora ali, e falando sem parar, porque a Florida era imune ao sono que o seu filho provocava aos outros, quer dizer que ela não se adormecia quando o pequeno João falava. Então, os dois comunicavam entre si perfeitamente.
Viram montras com ropa para mulheres e para crianças, viram montras de pastelarias com apetitosos bolos de chocolate, perfumados biscoitos de canela em forma de estrelas e deliciosos bolos-reis, e, naturalmente, viram muitas montras com brinquedos de todo tipo: bonecas de ropa elegante, casas de bonecas enormes, onde podia caber uma criança de três ou quatro anos – mas o Joãozinho certamente não cabia –, carritos de várias cores, cavalinhos de várias dimensões... O menino ficou entusiasmado. Nunca na sua vida tinha visto tantos brinquedos juntos.
Então, a Florida teve uma idea. «Porquê não vamos ao centro comercial?» propôs. «Disseram-me que há uma enorme árvore decorada com caramelos, e, no sector dos brinquedos, há um castelo enorme com bonecos grandes que movem sozinhos». O Joãozinho abriu os olhos tão grandes, que a sua mãe nunca tinha visto. «Siiiiiiiiiim», disse em voz tão alta que chegou até ao céu. Bom, até ao céu não, mas seguramente chegou muito alto. E certamente chegaria até mais alto, se o nosso amigo soubesse que a sua grande aventura estava a aproximar, galopando como um cavalo selvajem.
Apanharam o autocarro e, depois de um pequeno percurso entre o barulho do tráfico, que ao Joãozinho pareceu infinito, chegaram ao centro comercial. O Joãozinho nunca tinha visto coisa semelhante na sua vida. Quanta gente, meu Deus! Alguns estavam sozinhos, outros estavam com os seus filhos ou com os seus amigos, e todos tinham sacos com presentes nas mãos. No ar ouvia-se música alegre da época. Havia também tantas cores, e tantas luzes acesas! Era como um conto infantil.
Foi então quando o pequeno João perdeu a sua mãe. Ora, quando dizemos que a perdeu, desta vez estamos a falar literalmente, quer dizer que o Joãozinho perdeu a sua mãe e não a podia encontrar em nenhuma parte do centro comercial. O mesmo aconteceu com a Florida: perdeu o seu filhinho e não podia encontrá-lo.