Era uma vez uma menina muito bonita e
muito ingénua, que se chamava Florida Pestana. A Florida era tão bonita que
parecia como uma flor, cheia de perfumes. Aliás, por pura coincidência, a
Florida tinha umas pestanas longuíssimas, como fios de seda. Ora, muitos vão
pensar que a Florida, sendo tão bonita, era uma pessoa muito sortuda, mas,
infelizmente não era assim. Porque a Florida perdeu os seus pais quando era
muito pequena, e quando dizemos «perdeu» na verdade queremos dizer que
morreram, mas não o dizemos para os mais pequenos não ficarem muito tristes.
Mas vocês já são grandes, alguns já vão à escola, por isso podem ouvir a
verdade toda.
Então, os pais da Florida morreram, já se
sabe, e a pobre menina ficou sem família. A vida é dura e difícil para as
pessoas que estão sozinhas no mundo, isto também é um facto, e a Florida teve
uma vida difícil, mas conseguiu crescer e tornar-se uma mulher muito amável.
Foi
então quando a Florida conheceu o João, um jovem muito bonito também, loiro
como o trigo em Júnio e agradável como um agasalho nos dias frios de Janeiro. A
Florida apaixonou-se por ele e ele prometeu-lhe uma vida feliz, coisa que
ninguém conhece bastante para saber como é. Fizeram muitas coisas os dois
juntos e um dia nebuloso a Florida descobriu que estava grávida. Isto é quando
uma mulher tem um bebé dentro da barriga. Porque muitos dizem que a cegonha
traz os bebés, que parcialmente podia estar certo, dado que, metaforicamente,
um pássaro traz os bebés (podem buscar a palavra «metaforicamente» num
dicionário), e outros dizem que os bebés vêm da França, coisa que certamente
não está certa, dado que a França exporta muitos productos mas não exporta
bebés.
A Florida ficou muito surpreendida quando
viu que estava grávida, porque ela acreditava também na história da cegonha, e
não era como vocês que sabem muito bem que os bebés vêm da barriga da mãe. A
pobre menina não sabia o qué fazer mas achou boa ideia informar o João sobre o
assunto.
Foi então quando o João lembrou que tinha
de fazer uma viagem urgente à África do Sul por assuntos familiares, mas
prometeu-lhe que ia voltar pronto. A Florida despediu-se de ele cheia de
lágrimas e de esperanças e passou duas semanas encerrada no seu quarto, lendo
as cartas de amor que o João lhe tinha escrito.
Mas o João não voltou. E os meses passavam
e a barriga da Florida crescia como um balão. E foi daquele balão que veio no
mundo (neste mundo, quer dizer) o filho da Florida. No dia 13 de Abril a
Florida tornou-se mãe e o João tornou-se filho dela. Porque a menina ingénua
ainda amava o João e, para o ter de alguma maneira perto dela, deu o nome dele
ao seu filho. Mas, infelizmente, não sabia o apelido do pai do Joãozinho, por
isto foi que o João só tinha um apelido e este era o apelido da Florida, quer
dizer Pestana.
Ora muitos vão dizer que a aventura do
pequeno João Pestana começa aqui, dado que cada pessoa que nasce enfrenta um
desafio, mas eu, já conhecendo a história, digo-vos que a grande aventura dele
ainda não começou. Tenham paciência, então, porque, como o provérbio diz, saber
esperar é uma grande virtude.
O filho da Florida, então, se chamou João
Pestana e era um menino excepcional. Do pai tinha o cabelo de trigo e da mãe
tinha o coração de oiro. Mas o pequeno João tinha também um poder propriamente
seu: tinha uma voz muito doce e quando falava provocava sono às pessoas que o
ouviam. Naturalmente, ninguém conhecia este poder quando ele era muito pequeno,
porque todo o mundo sabe que os bebés não falam. Nem sequer ele o sabia.
O Joãozinho era um bebé muito tranquilo e
gostava muito de dormir. Às vezes sonhava com caramelos, casinhas de açúcar e
flores de chocolate e, então, no seu rosto rosado aparecia um sorriso grande.
Às vezes sonhava com tempestades e céus cinzentos, escuros, e acordava
chorando. Porque o Joãozinho tinha medo das tempestades e dos trovões. Quando o
tempo era muito mau e o João chorava por causa dos trovões, a Florida
secava-lhe os olhos, explicando-lhe que não devia ter medo dos trovões porque
são o tambor do céu e que quando se ouve o tambor do céu é porque os anjos têm
festa e dançam.
Os dois viviam com muita pobreza mas com
muito amor também. Quando não tinham bastante para comer, ela fingia que já
tinha comido, para deixar ao seu filho a pouca comida que havia. Bordava a ropa
dele com jotas de várias cores, cantava-lhe cançãozinhas infantis que ela mesma
inventava por ele, contava-lhe contos de princesas encantadas e dragões de
hálito ardente, tudo o que ela podia imaginar. A pobrezinha, procurava dar-lhe
toda a felicidade que ela nunca tinha experimentado.
Pronto, o Joãozinho proferiu as suas
primeiras palavrinhas, pois começou a dar os seus primeiros passos, primeiro
como um cãozinho, gatinhando com grande velocidade por todo o lado, pois como
uma pessoa de verdade, com os pés, baloiçando no início e gradualmente ganhando
confidência.
A Florida era muito feliz mesmo, e cada
dia acordava cheia de curiosidade para ver qual seria a próxima coisa engraçada
que o seu filhinho fazia. Como cada mãe respeitável, queria o melhor para ele e
procurava ajudá-lo para no futuro ele ter uma vida mais fácil do que a vida
dela.
Por isto, quando o Joãozinho chegou à
idade precisa, a sua mãe inscreveu-o na escola do bairro. Porque, como se diz,
a educação abre portas, quer dizer que quando uma pessoa estuda, tem mais
oportunidades na vida.
O primeiro dia de escola foi muito difícil
para os dois. O Joãozinho chorava levemente, e o seu rosto era vermelho por
chorar tanto. A Florida continha-se porque era a maior e os maiores (isto o
digo porque muitos não o sabem), mesmo quando parecem que não sentem nada só o
fazem para não parecer débeis. A pobrezinha, sorria por fora mas, por dentro
chorava sem parar.
O Joãozinho sentia-se sozinho porque não
conhecia ninguém. Escolhiu uma carteira num canto da aula, sentou-se e apoiou a
sua cabeçinha loira com ambas as suas mãos, olhando melancolicamente para o
chão. Imaginava que os azulejos do chão eram como um tabuleiro de xadrez, e
começou a imaginar os peões alegres correndo por todo o lado, os bispos
austeros praticando artes marciais, as torres fortes, o rei bondoso, a rainha
poderosa e os cavalos imprevisíveis galopando entre as carteiras, sem
cavaleiros, relinchando de vez em quando.
A situação tornou-se muito divertida
quando começaram as batalhas entre os peões. Logo, quando o rei foi morto por
um peão atrevido, a rainha não mostrou nenhum sinal de preocupação por ele, e o
Joãozinho ficou muito estranhado. A batalha continuava diante dos seus olhos,
quando o nosso amigo ouviu que a rainha estava a chamá-lo pelo seu nome. Mas,
como podia a rainha saber o nome dele? Que mistério! Os peões começaram a
rir-se. Foi então quando o Joãozinho abriu os olhos e viu que a professora
estava à sua frente, olhando-o e chamando-o pelo seu nome. Os outros alunos
estavam a rir-se, exactamente como os peões. O quê tinha acontecido?
O coitadinho tinha adormecido sem dar
conta, e quando a professora entrou na aula, ele já estava a dormir, com a sua
cabeçinha loira apoiada sobre a carteira. Que vergonha! Um homem já, de 6 anos
de idade, a dormir durante a aula! Tornou-se vermelho como uma papoila. Os
outros alunos não paravam de rir. Sentiu vontade de chorar mas, já o dissemos,
era um homem, tinha 6 anos. Preferiu sofrir por dentro.
A professora, que era muito simpática e
gostava muito do seu trabalho, disse aos alunos para deixarem de rir e deu ao
Joãozinho as boas-vindas. Mas, quando o chamou pelo seu nome inteiro, os alunos
desataram a rir outra vez e, para falar a verdade, desta vez riram mais. Até
que começaram a gritar ritmicamente «João Pestá-na! João Pestá-na! João
Pestá-na!». Porque este nome, quer dizer o nome dele, concordava com o episódio
anterior. Foi assim como o nome João Pestana em vez de ser somente um nome,
começou a ser nome e apodo ao mesmo tempo. E não havia maneira de mudar a
situação.
Muito pronto, toda a escola sabia dele e
do episódio e, muitas vezes, alunos de outras aulas que ele não conhecia,
chamavam-no pelo seu nome inteiro, rindo e mostrando-o com o dedo índice aos
outros alunos, coisa que não é sinal de pessoa educada. Naqueles momentos, o
pobre menino sentia-se muito mal e, como era tímido, ia embora e escondia-se no
retrete até o intervalo terminar.
A situação piorou mais tarde, quando o
rumor que o João Pestana não tinha pai correu por toda a escola. Isto, como
sabemos nós, não era verdade, porque já sabemos que o pai do Joaõzinho era o
João da África do Sul e, mesmo se não o soubéssemos, sabemos muito bem que
todas as crianças têm pai e mãe, só que alguns pais e mães vivem longe ou já
não vivem mais. Aliás, segundo a igreja, todos somos irmãos porque somos filhos
de Deus, não é assim?
Mas os alunos da escola talvez não o
soubéssem. Pouco a pouco, começaram a chamá-lo «bastardo». O Joãozinho não
sabia o que significava esta palavra, nem tinha dicionário em casa para a
buscar, mas sentiu que não era coisa boa. Se vocês buscarem a palavra no
dicionário, vão ver que tinha razão. É uma palavra muito cruel para ser
dirigida a qualquer pessoa, muito menos a uma criança tão frágil como ele. Eu,
pessoalmente, não a tenho usado nunca. A única razão pela qual me referi a ela,
foi para vos avisar. Porque para evitar um perigo é preciso saber qual é o
perigo. Agora que vocês conhecem esta palavra, tenho a certeza que, como
meninos bem educados, não a vão usar nunca.
O Joãozinho sentia muito infeliz, mas não
dizia nada à sua mãe porque não queria dar-lhe nenhum desgosto. Felizmente, o
intervalo não durava muito, e a maior parte do dia passava-a na aula,
aprendendo muitas coisas que nem sequer imaginava. Pouco a pouco aprendeu
coisas como o alfabeto, os números, os animais, as árvores, e quanto mais
aprendia mais ainda lhe faltava para aprender. Porque os conhecimentos não
terminam nunca. E se vocês podem guardar um segredo, ei-lo: ninguém conhece
tudo, nem sequer os nossos pais. Fiquem também a saber que vale a pena aprender
mais coisas. Mas não vou dizer mais porque já disse mais do que devia. Há
coisas que vocês têm de descobrir sozinhos. Sinto muito.
O Joãozinho gostava muito da escola e
estudava sempre. Não houve nem sequer um dia que ele foi à escola sem ter
estudado nada, como fazem muitos meninos e meninas. Mas havia um problema.
Quando o nosso amigo abria a boca e começava a falar, todos aqueles que o
ouviam adormeciam, incluso a professora. Um dia a professora pediu-lhe para ler
uma frase que estava escrita no quadro-negro e todos dormiram por dez minutos.
Um outro dia a professora pediu-lhe para falar sobre o que tinham aprendido no
dia anterior, e todos dormiram até ao intervalo seguinte. Depois disso, a
professora nunca mais lhe pediu para falar na aula, embora ele, como aluno bom
que era, levantasse o dedo índice pedindo licença para falar. Mas, mesmo assim,
o menino não deixou de estudar. Enfim.
A Florida estava muito orgulhosa do seu
filhinho, como todas as mães o são, e esperava algum dia poder oferecer-lhe
muitos presentes. Mas, já o dissemos, era muito pobre e não podia comprar-lhe
quase nada. Porém, isto não significa que não pudesse dar-lhe um presente
estupendo. Porque, como disse uma pessoa muito erudita, as coisas mais caras
são aquelas que não custam nada. Assím, um dia de Dezembro, com o Natal
aproximando e as montras encheando-se com decorações natalícias, a Florida foi
à escola do Joãozinho, e quando ele saíu, ela abraçou-o e disse-lhe que iam
passar o resto do dia juntos. Que presente tão caro! Que alegria tão grande! O
Joãozinho estava muito contente mesmo.
Caminharam pelas ruas da cidade, olhando
ora aqui ora ali, e falando sem parar, porque a Florida era imune ao sono que o
seu filho provocava aos outros, quer dizer que ela não se adormecia quando o
pequeno João falava. Então, os dois comunicavam entre si perfeitamente.
Viram montras com ropa para mulheres e
para crianças, viram montras de pastelarias com apetitosos bolos de chocolate,
perfumados biscoitos de canela em forma de estrelas e deliciosos bolos-reis, e,
naturalmente, viram muitas montras com brinquedos de todo tipo: bonecas de ropa
elegante, casas de bonecas enormes, onde podia caber uma criança de três ou
quatro anos – mas o Joãozinho certamente não cabia –, carritos de várias cores,
cavalinhos de várias dimensões... O menino ficou entusiasmado. Nunca na sua
vida tinha visto tantos brinquedos juntos.
Então, a Florida teve uma idea. «Porquê
não vamos ao centro comercial?» propôs. «Disseram-me que há uma enorme árvore
decorada com caramelos, e, no sector dos brinquedos, há um castelo enorme com
bonecos grandes que movem sozinhos». O Joãozinho abriu os olhos tão grandes,
que a sua mãe nunca tinha visto. «Siiiiiiiiiim», disse em voz tão alta que
chegou até ao céu. Bom, até ao céu não, mas seguramente chegou muito alto. E
certamente chegaria até mais alto, se o nosso amigo soubesse que a sua grande
aventura estava a aproximar, galopando como um cavalo selvajem.
Apanharam o autocarro e, depois de um
pequeno percurso entre o barulho do tráfico, que ao Joãozinho pareceu infinito,
chegaram ao centro comercial. O Joãozinho nunca tinha visto coisa semelhante na
sua vida. Quanta gente, meu Deus! Alguns estavam sozinhos, outros estavam com
os seus filhos ou com os seus amigos, e todos tinham sacos com presentes nas
mãos. No ar ouvia-se música alegre da época. Havia também tantas cores, e
tantas luzes acesas! Era como um conto infantil.
Foi então quando o pequeno João perdeu a
sua mãe. Ora, quando dizemos que a perdeu, desta vez estamos a falar
literalmente, quer dizer que o Joãozinho perdeu a sua mãe e não a podia
encontrar em nenhuma parte do centro comercial. O mesmo aconteceu com a
Florida: perdeu o seu filhinho e não podia encontrá-lo.