1. ERA UMA VEZ
Era uma vez uma menina muito bonita e
muito ingénua, que se chamava Florida Pestana. A Florida era tão bonita que
parecia como uma flor, cheia de perfumes. Aliás, por pura coincidência, a
Florida tinha umas pestanas longuíssimas, como fios de seda. Ora, muitos vão
pensar que a Florida, sendo tão bonita, era uma pessoa muito sortuda, mas,
infelizmente não era assim. Porque a Florida perdeu os seus pais quando era
muito pequena, e quando dizemos «perdeu» na verdade queremos dizer que
morreram, mas não o dizemos para os mais pequenos não ficarem muito tristes.
Mas vocês já são grandes, algúns já vão à escola, por isso podem ouvir a
verdade toda.
Então, os pais da Florida morreram, já se
sabe, e a pobre menina ficou sem família. A vida é dura e difícil para as
pessoas que estão sozinhas no mundo, isto também é um facto, e a Florida teve
uma vida difícil, mas conseguiu crescer e tornar-se uma mulher muito amável.
Foi
então quando a Florida conheceu o João, um jóvem muito bonito também, loiro
como o trigo em Júnio e agradável como um agasalho nos dias frios de Janeiro. A
Florida apaixonou-se por ele e ele prometeu-lhe uma vida feliz, coisa que
ninguém conhece bastante para saber como é. Fizeram muitas coisas os dois
juntos e um dia nebuloso a Florida descobriu que estava grávida. Isto é quando
uma mulher tem um bebé dentro da barriga. Porque muitos dizem que a cegonha
traz os bebés, que parcialmente podia estar certo, dado que, metaforicamente,
um pássaro traz os bebés (podem buscar a palavra «metaforicamente» num
dicionário), e outros dizem que os bebés vêm da França, coisa que certamente
não está certa, dado que a França exporta muitos productos mas não exporta
bebés.
A Florida ficou muito surpreendida quando
viu que estava grávida, porque ela acreditava também na história da cegonha, e
não era como vocês que sabem muito bem que os bebés vêm da barriga da mãe. A
pobre menina não sabia o qué fazer mas achou boa ideia informar o João sobre o
assunto.
Foi então quando o João lembrou que tinha
de fazer uma viagem urgente à África do Sul por assuntos familiares, mas
prometeu-lhe que ia voltar pronto. A Florida despediu-se de ele cheia de
lágrimas e de esperanças e passou duas semanas encerrada no seu quarto, lendo
as cartas de amor que o João lhe tinha escrito.
Mas o João não voltou. E os meses passavam
e a barriga da Florida crescia como um balão. E foi daquele balão que veio no
mundo (neste mundo, quer dizer) o filho da Florida. No dia 13 de Abril a
Florida tornou-se mãe e o João tornou-se filho dela. Porque a menina ingénua
ainda amava o João e, para o ter de alguma maneira perto dela, deu o nome dele
ao seu filho. Mas, infelizmente, não sabia o apelido do pai do Joãozinho, por
isto foi que o João só tinha um apelido e este era o apelido da Florida, quer
dizer Pestana.
Ora muitos vão dizer que a aventura do
pequeno João Pestana começa aqui, dado que cada pessoa que nasce enfrenta um
desafio, mas eu, já conhecendo a história, digo-vos que a grande aventura dele
ainda não começou. Tenham paciência, então, porque, como o provérbio diz, saber
esperar é uma grande virtude.
O filho da Florida, então, se chamou João
Pestana e era um menino excepcional. Do pai tinha o cabelo de trigo e da mãe
tinha o coração de oiro. Mas o pequeno João tinha também um poder propriamente
seu: tinha uma voz muito doce e quando falava provocava sono às pessoas que o
ouviam. Naturalmente, ninguém conhecia este poder quando ele era muito pequeno,
porque todo o mundo sabe que os bebés não falam. Nem sequer ele o sabia.
O Joãozinho era um bebé muito tranquilo e
gostava muito de dormir. Às vezes sonhava com caramelos, casinhas de açúcar e
flores de chocolate e, então, no seu rosto rosado aparecia um sorriso grande.
Às vezes sonhava com tempestades e céus cinzentos, escuros, e acordava
chorando. Porque o Joãozinho tinha medo das tempestades e dos trovões. Quando o
tempo era muito mau e o João chorava por causa dos trovões, a Florida
secava-lhe os olhos, explicando-lhe que não devia ter medo dos trovões porque
são o tambor do céu e que quando se ouve o tambor do céu é porque os anjos têm
festa e dançam.
Os dois viviam com muita pobreza mas com
muito amor também. Quando não tinham bastante para comer, ela fingia que já
tinha comido, para deixar ao seu filho a pouca comida que havia. Bordava a ropa
dele com jotas de várias cores, cantava-lhe cançãozinhas infantis que ela mesma
inventava por ele, contava-lhe contos de princesas encantadas e dragões de
hálito ardente, tudo o que ela podia imaginar. A pobrezinha, procurava dar-lhe
toda a felicidade que ela nunca tinha experimentado.
Pronto, o Joãozinho proferiu as suas
primeiras palavrinhas, pois começou a dar os seus primeiros passos, primeiro
como um cãozinho, gatinhando com grande velocidade por todo o lado, pois como
uma pessoa de verdade, com os pés, baloiçando no início e gradualmente ganhando
confidência.
A Florida era muito feliz mesmo, e cada
dia acordava cheia de curiosidade para ver qual seria a próxima coisa engraçada
que o seu filhinho fazia. Como cada mãe respeitável, queria o melhor para ele e
procurava ajudá-lo para no futuro ele ter uma vida mais fácil do que a vida
dela.
Por isto, quando o Joãozinho chegou à
idade precisa, a sua mãe inscreveu-o na escola do bairro. Porque, como se diz,
a educação abre portas, quer dizer que quando uma pessoa estuda, tem mais
oportunidades na vida.
O primeiro dia de escola foi muito difícil
para os dois. O Joãozinho chorava levemente, e o seu rosto era vermelho por
chorar tanto. A Florida continha-se porque era a maior e os maiores (isto o
digo porque muitos não o sabem), mesmo quando parecem que não sentem nada só o
fazem para não parecer débeis. A pobrezinha, sorria por fora mas, por dentro
chorava sem parar.
O Joãozinho sentia-se sozinho porque não
conhecia ninguém. Escolhiu uma carteira num canto da aula, sentou-se e apoiou a
sua cabeçinha loira com ambas as suas mãos, olhando melancolicamente para o
chão. Imaginava que os azulejos do chão eram como um tabuleiro de xadrez, e
começou a imaginar os peões alegres correndo por todo o lado, os bispos
austeros praticando artes marciais, as torres fortes, o rei bondoso, a rainha
poderosa e os cavalos imprevisíveis galopando entre as carteiras, sem
cavaleiros, relinchando de vez em quando.
A situação tornou-se muito divertida
quando começaram as batalhas entre os peões. Logo, quando o rei foi morto por
um peão atrevido, a rainha não mostrou nenhúm sinal de preocupação por ele, e o
Joãozinho ficou muito estranhado. A batalha continuava diante dos seus olhos,
quando o nosso amigo ouviu que a rainha estava a chamá-lo pelo seu nome. Mas,
como podia a rainha saber o nome dele? Que mistério! Os peões começaram a
rir-se. Foi então quando o Joãozinho abriu os olhos e viu que a professora
estava à sua frente, olhando-o e chamando-o pelo seu nome. Os outros alunos
estavam a rir-se, exactamente como os peões. O quê tinha acontecido?
O coitadinho tinha adormecido sem dar
conta, e quando a professora entrou na aula, ele já estava a dormir, com a sua
cabeçinha loira apoiada sobre a carteira. Que vergonha! Um homem já, de 6 anos
de idade, a dormir durante a aula! Tornou-se vermelho como uma papoila. Os
outros alunos não paravam de rir. Sentiu vontade de chorar mas, já o dissemos,
era um homem, tinha 6 anos. Preferiu sofrir por dentro.
A professora, que era muito simpática e
gostava muito do seu trabalho, disse aos alunos para deixarem de rir e deu ao
Joãozinho as boas-vindas. Mas, quando o chamou pelo seu nome inteiro, os alunos
desataram a rir outra vez e, para falar a verdade, desta vez riram mais. Até
que começaram a gritar ritmicamente «João Pestá-na! João Pestá-na! João
Pestá-na!». Porque este nome, quer dizer o nome dele, concordava com o episódio
anterior. Foi assim como o nome João Pestana em vez de ser somente um nome,
começou a ser nome e apodo ao mesmo tempo. E não havia maneira de mudar a
situação.
Muito pronto, toda a escola sabia dele e
do episódio e, muitas vezes, alunos de outras aulas que ele não conhecia,
chamavam-no pelo seu nome inteiro, rindo e mostrando-o com o dedo índice aos
outros alunos, coisa que não é sinal de pessoa educada. Naqueles momentos, o
pobre menino sentia-se muito mal e, como era tímido, ia embora e escondia-se no
retrete até o intervalo terminar.
A situação piorou mais tarde, quando o
rumor que o João Pestana não tinha pai correu por toda a escola. Isto, como
sabemos nós, não era verdade, porque já sabemos que o pai do Joaõzinho era o
João da África do Sul e, mesmo se não o soubéssemos, sabemos muito bem que
todas as crianças têm pai e mãe, só que algúns pais e mães vivem longe ou já
não vivem mais. Aliás, segundo a igreja, todos somos irmãos porque somos filhos
de Deus, não é assim?
Mas os alunos da escola talvez não o
soubéssem. Pouco a pouco, começaram a chamá-lo «bastardo». O Joãozinho não
sabia o que significava esta palavra, nem tinha dicionário em casa para a
buscar, mas sentiu que não era coisa boa. Se vocês buscarem a palavra no
dicionário, vão ver que tinha razão. É uma palavra muito cruel para ser
dirigida a qualquer pessoa, muito menos a uma criança tão frágil como ele. Eu,
pessoalmente, não a tenho usado nunca. A única razão pela qual me referi a ela,
foi para vos avisar. Porque para evitar um perigo é preciso saber qual é o
perigo. Agora que vocês conhecem esta palavra, tenho a certeza que, como
meninos bem educados, não a vão usar nunca.
O Joãozinho sentia muito infeliz, mas não
dizia nada à sua mãe porque não queria dar-lhe nenhúm desgosto. Felizmente, o
intervalo não durava muito, e a maior parte do dia passava-a na aula,
aprendendo muitas coisas que nem sequer imaginava. Pouco a pouco aprendeu
coisas como o alfabeto, os números, os animais, as árvores, e quanto mais
aprendia mais ainda lhe faltava para aprender. Porque os conhecimentos não
terminam nunca. E se vocês podem guardar um segredo, ei-lo: ninguém conhece
tudo, nem sequer os nossos pais. Fiquem também a saber que vale a pena aprender
mais coisas. Mas não vou dizer mais porque já disse mais do que devia. Há
coisas que vocês têm de descobrir sozinhos. Sinto muito.
O Joãozinho gostava muito da escola e
estudava sempre. Não houve nem sequer um dia que ele foi à escola sem ter
estudado nada, como fazem muitos meninos e meninas. Mas havia um problema.
Quando o nosso amigo abria a boca e começava a falar, todos aqueles que o
ouviam adormeciam, incluso a professora. Um dia a professora pediu-lhe para ler
uma frase que estava escrita no quadro-negro e todos dormiram por dez minutos.
Um outro dia a professora pediu-lhe para falar sobre o que tinham aprendido no
dia anterior, e todos dormiram até ao intervalo seguinte. Depois disso, a
professora nunca mais lhe pediu para falar na aula, embora ele, como aluno bom
que era, levantasse o dedo índice pedindo licença para falar. Mas, mesmo assim,
o menino não deixou de estudar. Enfim.
A Florida estava muito orgulhosa do seu
filhinho, como todas as mães o são, e esperava algún dia poder oferecer-lhe
muitos presentes. Mas, já o dissemos, era muito pobre e não podia comprar-lhe
quase nada. Porém, isto não significa que não pudesse dar-lhe um presente
estupendo. Porque, como disse uma pessoa muito erudita, as coisas mais caras
são aquelas que não custam nada. Assím, um dia de Dezembro, com o Natal
aproximando e as montras encheando-se com decorações natalícias, a Florida foi
à escola do Joãozinho, e quando ele saíu, ela abraçou-o e disse-lhe que iam
passar o resto do dia juntos. Que presente tão caro! Que alegria tão grande! O
Joãozinho estava muito contente mesmo.
Caminharam pelas ruas da cidade, olhando
ora aqui ora ali, e falando sem parar, porque a Florida era imune ao sono que o
seu filho provocava aos outros, quer dizer que ela não se adormecia quando o
pequeno João falava. Então, os dois comunicavam entre si perfeitamente.
Viram montras com ropa para mulheres e
para crianças, viram montras de pastelarias com apetitosos bolos de chocolate,
perfumados biscoitos de canela em forma de estrelas e deliciosos bolos-reis, e,
naturalmente, viram muitas montras com brinquedos de todo tipo: bonecas de ropa
elegante, casas de bonecas enormes, onde podia caber uma criança de três ou
quatro anos – mas o Joãozinho certamente não cabia –, carritos de várias cores,
cavalinhos de várias dimensões... O menino ficou entusiasmado. Nunca na sua
vida tinha visto tantos brinquedos juntos.
Então, a Florida teve uma idea. «Porquê
não vamos ao centro comercial?» propôs. «Disseram-me que há uma enorme árvore
decorada com caramelos, e, no sector dos brinquedos, há um castelo enorme com
bonecos grandes que movem sozinhos». O Joãozinho abriu os olhos tão grandes,
que a sua mãe nunca tinha visto. «Siiiiiiiiiim», disse em voz tão alta que
chegou até ao céu. Bom, até ao céu não, mas seguramente chegou muito alto. E
certamente chegaria até mais alto, se o nosso amigo soubesse que a sua grande
aventura estava a aproximar, galopando como um cavalo selvajem.
Apanharam o autocarro e, depois de um
pequeno percurso entre o barulho do tráfico, que ao Joãozinho pareceu infinito,
chegaram ao centro comercial. O Joãozinho nunca tinha visto coisa semelhante na
sua vida. Quanta gente, meu Deus! Algúns estavam sozinhos, outros estavam com
os seus filhos ou com os seus amigos, e todos tinham sacos com presentes nas
mãos. No ar ouvia-se música alegre da época. Havia também tantas cores, e
tantas luzes acesas! Era como um conto infantil.
Foi então quando o pequeno João perdeu a
sua mãe. Ora, quando dizemos que a perdeu, desta vez estamos a falar
literalmente, quer dizer que o Joãozinho perdeu a sua mãe e não a podia
encontrar em nenhuma parte do centro comercial. O mesmo aconteceu com a
Florida: perdeu o seu filhinho e não podia encontrá-lo.
2. O HOMEM DO RABO DE CAVALO
Como foi isto possível ninguém sabe dizer
exactamente. Somente podemos imaginar. O mais provável foi que em algum momento
o Joãozinho deixasse a mão da sua mãe sem dar conta, quando estava a olhar,
maravilhado, por todo o lado, e depois com toda esa multidão que ia e vinha é
também provável que não lhe fosse possível encontrar a mão materna outra vez.
Olhou por cá, olhou por lá, chamou o nome dela, mas não havia nem rasto da
Florida. A verdade é, claro, que a Florida não desapareceu, mas não estava no
posto certo, e por isto foi que nem ela nem ele podiam encontrar-se.
Os olhos do Joãozinho enceiaram-se de
lágrimas e a sua visão tornou-se turva, piorando a situação. Muito pronto, o
nosso amigo perdeu toda esperança de encontrar a sua mãe. Foi então quando
apareceu o homem do rabo de cavalo.
- O quê está a acontecer, menino?
perguntou sorrindo para ele.
- Perdi – a – mi – nha – mã – ãe, respondeu ele
entre soluços.
- Já sabia eu que eras tu, disse o homem.
A tua mãe mandou-me para te levar a ela. Está aqui perto, numa loja de
brinquedos, adicionou mostrando com a sua mão direita. Tinha um anel de oiro no
dedo pequeno. Ora, deixa de chorar. Vamos para ela. Vai.
O Joãozinho secou os seus olhos e olhou
para o homem. Era alto, moreno e muito magro, e tinha os olhos pequenos e muito
escuros. Usava óculos redondos e tinha o cabelo comprido, como já dissemos.
Usava calças de ganga e botas de pele. Tinha também algumas rugas ao lado da
boca e ao lado dos olhos.
Não
parecia ser uma pessoa má. Pelo contrário, era simpático e parecia ser muito
sério, talvez por causa dos óculos redondos. O homem sorriu outra vez. Os seus
dentes eram brancos. Estendeu a sua mão do anel para o Joãozinho a pegar.
- Pega na minha mão, disse, para não te perderes
na multidão.
O anel estava a reflectir as luzes acesas
que estavam por cima deles.
Ora vocês já estão a gritar para ele não
pegar na mão do homem, porque são meninos espertos e sabem muito bem que um
menino não deve fiar de nenhuma pessoa que não conhece bem. Mas o Joãozinho,
coitadinho, estava tão preocupado pela sua mãe que não podia pensar claramente.
Então, estendeu a sua mãozinha e pegou na
mão do homem do rabo de cavalo. Era uma mão áspera e um bocadinho fria. O homem
apertou a mão do Joãozinho e começou a andar com passos grandes. O Joãozinho
começou a correr, para poder seguí-lo. Viu as lojas que passavam frente aos
seus olhos e a gente que se abria para os dois poderem passar, e a música do
local estava a misturar-se com o barulho da gente, e o nosso amigo pequeno
sentiu-se confundido. Mas não disse nada. Só pensava na sua mãe, que
seguramente estaria muito preocupada por ele.
- Aonde vamos? só teve tempo para perguntar.
- Não te disse? À tua mãe.
Um guarda gordo estava na entrada.
- Vem por aqui, disse o homem ao Joãozinho
e puxou-o para a direcção oposta.
Já estavam fora do centro comercial. Mas,
onde estava a sua mãe? Teria ido tão longe? O homem repetia continuamente «por
aqui» e continuava a andar depressa. Passaram muitas lojas, alguns cafés e uma
loja de brinquedos e entraram numa rua estreita sem muitas luzes. Não havia
muita gente lá.
O Joãozinho começou a pensar mais
claramente. A sua mãe não gostava dos lugares escuros, e muito mais quando era
de noite. Aliás, não havia lojas naquela zona. Seria que aquele homem lhe
tivesse mentido? Procurou libertar-se mas a mão do homem era como uma tenaz.
- Largue-me! disse, mas o homem nem reparou. Largue-me!
repetiu.
Foi então quando o homem o ouviu.
- Mas já chegamos, disse. A loja fica a dois
passos de aqui.
- É mentira! gritou então o Joãozinho. A
minha mãe não está aqui. O senhor mentiu!
O homem parou e voltou para ele, sem
soltar a sua mãozinha.
- Olha aqui, menino, disse e a sua voz
tornou-se rouca, vem comigo como menino bom, ou sei eu muito bem como fazer-te
vir comigo sem mais. Estamos?
O Joãozinho sentiu muito medo do homem,
talvez por causa da sua voz, que parecia vir do estômago da terra, se a terra
tivesse estômago. Sentiu muito mais medo do que sentiria se ouvisse vinte
trovões juntos.
- Mexe-te, disse o homem.
3. ENTRE MAESTRO E PASSARINHO
Foram para um carro que estava estacionado
ao lado de um contentor de lixo. O carro parecia vazio, mas quando o homem
abriu a porta, o Joãozinho viu que havia condutor.
- Entra, disse o
homem e empurrou o menino para dentro do carro. Entra, repetiu.
- Ó, Maestro, tardaste muito, disse o condutor.
- Achas que é fácil? perguntou-o o homem. Pára com
as brincadeiras. Anda, vamos, que não quero perder mais tempo.
- Este é o menino?
Olhou-o através do espelho.
- Parece fraco, adicionou.
- Tu não te metas nisto. O teu trabalho é
conduzir. Anda, disse o Maestro.
Parecia zangado.
- Tu és quem sabe melhor, sim senhor,
disse o condutor. Mas não gosto deste menino. Tenho certeza que vai levar-nos
problemas, ou o meu nome não é Passarinho.
- A ti não te pagam para pensar.
- Só disse...
- E não te pagam para dizer a tua opinião. Conduz!
O Passarinho arrancou o motor e começaram
a correr pelas ruas da cidade. Todo este tempo o Joãozinho estava a observar o
Passarinho. E o Passarinho era tudo o contrário daquilo que significava o seu
nome. Era gordo, calvo e tinha grandes bigodes. Embora fosse inverno, usava uma
camisa de manga curta e o seu braço desnudo era cheio de cabelos. Tinha também
um dente de oiro e usava um anel grande no dedo pequeno.
O Joãozinho, que era um menino
inteligente, pensou que devia procurar memorizar o caminho e, então, deu
atenção às imagens da cidade que passavam rapidamente frente aos seus olhos.
Mas não era nada fácil. Primeiro, era já
noite e as ruas eram muito escuras. Segundo, o menino não conhecia a cidade e
não podia reconhecer nada. Terceiro, era bastante tarde e o miudo tinha vontade
de dormir. Porém, decidiu combater o sono e procurou manter os seus olhos bem
abertos.
Passaram por ruas onde as casas pareciam
iguais. Eram casas velhas, com azulejos nas façadas, mas sem nada especial.
Passaram fora de uma igreja, e foi então que o Joãozinho deixou a sua tarefa
durante unos minutos para rezar. Pediu a Deus para o salvar e para proteger a
sua mãe, que já agora estaria como louca pela preocupação. Naquele momento
ouviram-se os sinos da igreja e o nosso amigo, como normalmente fazemos todos
em tais casos, pensou que isto era um sinal que mostrava que Deus tinha ouvido
a sua reza. Claro, ninguém pode garantir que as coisas eram assim, mas ele
sentiu-se melhor.
O carro corria por ruas escuras e
tranquilas. O Maestro não olhava fora nem falava, tinha toda a sua atenção
virada para o Joãozinho.
- Atenção, disse de repente ao Passarinho.
Corre, mas há limites de velocidade. Ou queres que nos apanhe a polícia das
estradas?
- Perdão padrão, disse o Passarinho.
Distraí-me. Estava a pensar na minha mulher. Disse que me vai deixar.
- Não me digas! disse o Maestro, mas era
evidente que estava a falar com ironia, quer dizer que falava como se se
importasse, mas era evidente que não se importava nada. Escuta, filho, tu és
quem devia ter terminado este matrimónio. A tua vida não tem nada a ver com a
vida de uma pessoa de família. A família faz mal a pessoas como tu e como eu,
porque põe limites e a gente como nós precisa de libertade absoluta para viver.
Menos mal, então, que a tua mulher tomou a decisão certa, já que tu
evidentemente não podias. Tu, tranquilo, disse ao Joãozinho, que tinha mexido
um bocadinho.
- É fácil falar assim quando uma pessoa
não tem filhos. Mas eu tenho um filho, esqueceste? Se ela me deixar, vai levar o
meu filho com ela, e não vou ver o meu pequeno Tomás nunca mais.
- E que queres que faça? Preferes ter o
teu filho contigo? Que tipo de vida vai ter? Que tipo de pessoa vai ser? Ou
pensas que tu e eu somos pessoas exemplares para a sociedade? Deixa o menino.
Talvez tenha mais sorte longe de ti.
Ficou pensativo.
- Olha, eu também podia ter família. Não
me faltaram as oportunidades. Porém preferi viver sozinho para não levar mais
gente ao chamado «mau caminho». Tu foste débil, mas agora tens a oportunidade
de arranjar tudo. Deixa a mulher. Finge que nunca existiu. Finge que o filho
não é teu. É melhor para ele. Para ti também.
- E agora este trabalho, disse o
Passarinho. Na próxima vez, por favor, escolhe outra vítima. Um homem ou uma
mulher. Não mais crianças. Dói-me o coração.
- Tu não és homem, disse o Maestro e cuspiu no ar.
A conversa terminou. O Joãozinho sentiu
compaixão para o Passarinho. Em fim, o homem tinha coração. Encuanto que o
outro... De repente viu a sua mãe, que lhe estava a dizer «Todos têm coração,
meu amor. Nunca te esqueças». Por pouco chamou-a, mas deu conta que a sua mãe
estava na sua imaginação e parou. Uma lágrima caíu na sua face.
- Isto é o que faltava! disse o Maestro.
Pára de chorar, as lágrimas não te vão salvar. Ó, Passarinho, olho na rua,
desgraçado! Queres matar-nos?
Silêncio caíu dentro do carro. O Joãozinho
perdeu toda esperança de voltar a ver a sua mãe. Já tinha passado muita hora
desde quando tinham partido. Parecia que estavam a chegar às fronteiras do
país.
- Por fim, disse o Maestro de repente.
Pensei que não chegávamos nunca.
Devagar e com os farois apagados, entraram
numa garagem. O Maestro saíu do carro e disse ao Joãozinho para ele sair
também. O Passarinho ficou dentro. Disse que ia comprar alguma coisa para
comerem.
- Compra alguma cerveja também, disse-lhe
o Maestro e empurrou o menino para uma porta de metal.
4. PRISIONEIRO
A porta estava aberta. Entraram num quarto
pequeno, escuro e sujo, quase vazio. Só havia duas cadeiras, uma mesa e uma
cama pequena. Num canto, no chão, havia também um telefone. Funcionaria? O
quarto havia uma janela e duas portas mais. Cheirava a mofo. O Maestro abriu
uma das portas e disse ao Joãozinho para entrar. Ele obedeceu e quando entrou,
o homem fechou a porta à chave. O Joãozinho ficou sozinho.
- Fica tranquilo, disse o Maestro. De aqui
não escapas.
Tinha razão. O quarto era ainda mais
pequeno do que o outro e não tinha janelas. Só havia uma cama pequena
desarrumada, e uma bandeja com um copo e um prato vazios no chão. Parece que
ele não era o primeiro residente do lugar.
Arrumou
a cama e sentou-se. Estava muito frio e não havia calefacção. O coitadinho
começou a tiritar. Cobriu-se com o cobertor, mas mesmo assim não conseguia
aquecer-se. Que horas seriam? Se agora estivesse em casa, já estaria na sua
cama, teria bebido um copo de leite quente e a sua mãezinha estaria a
contar-lhe uma história engraçada como só ela sabia contar. Ouviou a outra
porta do lugar abrir. A porta depois fechou e no quarto contíguo houve vozes.
Obviamente, o Maestro não estava sozinho. O Passarinho teria voltado. Procurou
perceber o que estavam a dizer, mas estavam a falar baixo e não conseguiu
perceber nada.
Mas, pronto os dois homens começaram a
discutir e o tom da conversa subiu. O Joãozinho pegou a orelha na porta para
poder ouvir melhor.
- Como que não tem cliente? perguntava o
Maestro.
- Disse-me que ultimamente não há mercado
para crianças tão grandes.
- Como que não há mercado? O menino não é
tão grande. Não terá mais de cinco anos.
- Mesmo assim, disse que agora só se
vendem bebés de alguns meses e não crianças que vão à escola. Aliás, há também
o mercado de China e é muito difícil combater os chineses, disse.
- Sabes o que digo eu? Que o tipo está a
brincar connosco. Não nos disse no outro dia que se conhecíamos algum menino,
porque tinha um cliente exigente que não podia esperar? Pois, onde está aquele
cliente? Sumiu?
- Podia ter mentido...
- Ou podia estar à procura de outros
fornecedores, mais baratos.
- Mais baratos do que nós não há, seguro.
- E o chineses? Porquê será que se referiu
aos chineses? Achas que foi pura casualidade?
- Sei lá...
- Sabes lá, sabes lá, está certo que não
foi. Pensa nisto: na China, cada dia nacem miles de bebés. Aqui, quantos bebés
nacem por dia?
- Sim, parece lógico, mas mesmo assim
penso que o Raposo somente perdeu o cliente...
- Não sejas tão estúpido, Passarinho. O
Raposo quer sair à francesa, mas não sabe bem com quem se mete. Ele também tem
padrão. Ó Passarinho, nem podes imaginar aonde posso chegar. Vou dar ao nosso
amigo uma ensinadela que nunca vai esquecer, descuida-te.
- E o que vamos fazer com o menino?
- Procuro eu o cliente.
- Tu?
- Sim, não achas que sou capaz? Mas, antes
de tudo, quero saber uma coisa. Ó, tu, ranhoso!
O Joãozinho apanhou um susto! O Maestro já
estava atrás da porta. O nosso amigo quase ficou paralisado. Por pouco não o
apanharam com a orelha pegada na porta!
- Diz-me lá, disse o Maestro quando abriu
a porta. Quantos anos tens?
Que devia responder? A sua mãe dizia-lhe
sempre que devia dizer a verdade, mas aqueles homens, como parecia, queriam
vendê-lo e, como disse o Maestro, não havia mercado para crianças grandes. Então,
decidiu dizer uma mentira para se salvar.
- Não ouves? perguntou o Maestro.
Perguntei-te uma coisa.
- Tenho dez anos, disse ele porque dez
anos lhe parecia uma idade bastante grande.
- Não digas parvoíces. Não pareces ter
mais de cinco.
O Joãozinho pensou insistir na sua
mentira.
- Tenho dez anos, repetiu. Vou cumprir dez
dentro de três meses.
- Achas que és tão esperto? perguntou o
Maestro, bocejando um bocadinho. Pois sei eu uma maneira de saber a tua idade.
E sabes como? Os teus dentes não mentem, miudo. Vão dizer-me toda a verdade
sobre a tua idade. Abre a boca para eu ver.
- Pois, disse o Joãozinho, a verdade é que
tenho oito anos.
- Então, já começaram os saldos? Mesmo
assim, abre a boca.
Agarrou-lhe a cabeça e abriu-lhe a boca
com as suas mãos que eram muito fortes.
- Pois sim, disse com prazer. Os dentes
novos de frente já aparecidos, mas ainda não completamente. Cinco ou seis anos,
ao máximo.
O Joãozinho ficou triste, mas, por outro
lado, aprendeu uma coisa: que além dos cavalos, os dentes servem também para
calcular a idade das crianças pequenas.
O Maestro saíu e fechou a porta outra vez.
- Amanhã vou procurar um cliente, disse ao
Passarinho.
O Joãozinho ficou sozinho outra vez, mas
foi para uns minutos só. A porta abriu outra vez e apareceu o Maestro, com uma
sandes de fiambre e um copo de leite nas mãos.
- Toma, disse-lhe. Não queremos deixar-te
morrer de fome.
- Tenho frio, disse o Joãozinho.
O Maestro suspirou.
- Quando digo eu que as crianças são um
mau deste mundo tenho razão. Filhos mimados, todos! «Tenho frio, tenho fome,
quero isto, quero o outro...» E eu não tenho muita paciência.
O Passarinho apareceu na porta com um
cobertor nas mãos.
- E eis o anjo bom, já na porta, com um
cobertor para o nosso príncipe não sentir frio! Tu não és homem!
O Maestro, zangado como era, saíu do
quarto e o Passarinho deixou o cobertor sobre a cama. «Boa noite» disse a voz
baixa e saíu ele também. Depois, fechou a porta à chave.
- E não faças barulho, ouviu-se a voz do
Maestro, ou sei eu bem como fazer-te calar.
O Joãozinho ficou sozinho, e desta vez
seria para toda a noite. Bebeu o leite, que era frio, e comeu a sandes, que não
era muito fresca. Depois, deitou-se na cama e cobriu-se com os dois cobertores.
Menos mal que havia luz no quarto. Assim, pelo menos, havia uma fonte de calor.
Foi difícil acalmar. Era a primeira vez
que ficava sozinho de noite e a presença dos dois homens tão perto dele não era
nada confortante. Aliás, tinha medo dos ratos. E se naquele lugar, que era tão
sujo, havia ratos? Oxalá não houvesse. O Cristovão Colombo, alcunha do
Cristovão Calumba, que era aluno da segunda e que tinha andado pelo mundo,
dizia que os ratos podem comer a cara de uma pessoa se têm fome. O Joãozinho
cobriu a sua cabeça com os cobertores. Assim, nenhum rato podia comer-lhe a
cara. Foi muito tarde quando conseguiu dormir.
5. NUM BAIRRO ESCURO
E agora vamos deixar o nosso amigo – que
de qualquer maneira não vai a nenhuma parte – e voamos, com as asas da nossa
fantasia, fora daquele local, por cima da cidade que está a dormir, ninada pelo
sopro do vento da noite. Voamos por cima dos telhados, por cima das cúpulas das
igrejas, passamos por bairros ricos e por bairros pobres, e entramos num bairro
tranquilo, escuro, onde não há luzes acesas. Mas, que é isto? Será luz? Vamos
mais perto para ver melhor. Sim, é verdade. Numa janela há luz. Alguém estará
acordado. Quem será? Entramos?
Dentro de um quarto pequeno, onde há uma
cama, um armário, uma mesa pequena com alguns livros encima e duas cadeiras ao
lado dela, há uma mulher jovem e bonita que está a chorar. Os seus olhos estão
vermelhos por ter chorado muito. Está sentada numa das cadeiras e nas suas mãos
tem uma camisa azul com um jota azul escuro bordado num bolso. Olha a camisa e
chora. É a mãe do Joãozinho.
A pobrezinha não conseguiu fazer nada para
encontrar o seu filho e por isto está tão triste. Quando, no centro comercial,
deu conta que tinha perdido o Joãozinho, e depois de o ter procurado por todo o
lado, foi directamente à Polícia. Pediu ajuda para encontrar o seu filho, mas o
comissário disse-lhe que não podiam fazer nada, sem primeiro não passarem vinte
e quatro horas. Muitas vezes, adicionou, as crianças fogem mas, normalmente
voltam para casa dentro de vinte e quatro horas. Provavelmente o mesmo tivesse
acontecido com o João.
Mas como isto era possível? Eles não
sabiam quanto bom era o seu Joãozinho. Ele não fugiria nunca porque a queria
muito. Aliás, era uma criança pequena e não conhecia como voltar a casa. Como
podiam ser tão indiferentes? Ela chorou, suplicou, ameaçou, mas não conseguiu
nada. O comissário mandou-a para casa, porque se o Joãozinho voltasse e não a
encontrasse, provavelmente ia-se embora outra vez.
Com o coração muito magoado, a Florida
voltou para casa e sentou-se numa cadeira, com a sua atenção virada para fora, procurando
ouvir os passos do seu filho a chegar a casa, dando um salto cada vez que ouvia
algum som fora da porta e depois desiludindo-se quando dava conta que não havia
ninguém. Não comeu nada, nem mudou de postura. Somente quanto caíu a noite,
levantou-se, acendeu a luz, tomou uma camisa do Joãozinho nas mãos como se
fosse ele mesmo e sentou-se outra vez. Nesta postura é que a vemos agora. É uma
pena que não possamos confortá-la.
Fora da janela da Florida, as nuvens
reúnem-se como se tivessem segredos para contar. Talvez estão a falar do
Joãozinho, talvez de algum outro. Mas não parecem ser muito educados, falam
todos juntos, interrompem o um ao outro, alguns falam mais alto, outros começam
a falar mais alto ainda para ser ouvidos, pouco a pouco a situação passa os
limites e começa uma rixa forte. Ouve-se muito barulho, há bofetadas,
palavrões, mas no fim, todo se resolve com um choro enorme.
A Florida ouve os trovões e vê a chuva
forte que cai fora da janela. Pensa no seu filho. Onde estará? Quem estará com
ele para o acalmar, já que tem medo dos trovões? A pobre mulher não pode parar
de chorar e as suas lágrimas são maiores do que as maiores gotas da chuva.
6. ASSUSTADO
Longe da sua casa, o Joãozinho acordou
assustado. Que trovões, meu Deus! Onde estava a sua mãezinha querida? Começou a
chamá-la, várias vezes. Então, ouviu-se um trovão e a porta do quarto abriu.
- Não te disse para ficares tranquilo?
disse o Maestro. Porque gritas? Não sabes que quando chove há trovões? Pára com
os gritos, ou não acabas bem, aseguro-to. Percebes, ou estou a falar para o
boneco?
- É apenas uma criança, disse o Passarinho
que entrou também no quarto. As crianças têm medo dos trovões. O meu Tomás...
- Pára tu também com o teu Tomás! Preciso
de dormir e se este miudo não me deixar dormir, não vou poder trabalhar amanhã!
Preciso de ter a cabeça clara, para conseguir encontrar um cliente que valha.
O Passarinho olhou para o Joãozinho. Ele
continuava a chorar, mas muito baixo, como se estava a murmurar. O seu Tomás
também tinha medo dos trovões. Sentiu compaixão pelo menino.
- Anda tu, disse ao Maestro, e eu fico com
o miudo. Não vai gritar mais. Anda!
- Tu não és homem, disse o Maestro enquanto
saía do quarto. Vou fechar à chave.
Fechou a porta.
- O que é isto, menino? perguntou o
Passarinho. Não sabes que não deves ter medo dos trovões?
O Joãozinho olhou para ele. Sabia a
história do tambor do céu?
- A minha mãe diz que os trovões são o
tambor do céu, disse a voz baixa.
- É? disse o Passarinho e bocejou
levemente. Pois, a minha mãe dizia que quando chove é porque Deus está a chorar
pelos nossos pecados.
- Que significa «pecado»? perguntou o
menino.
- Más acções, disse o homem e ficou
pensativo. Bocejou outra vez. Enfim, não é hora para falar sobre tambores e
pecados. Mexe-te, vai mais perto da parede, vamos dormir juntos.
O homem gordo deitou-se na cama e abraçou
o menino para os dois caberem melhor.
- Vamos dormir, repetiu.
O Joãozinho fechou os olhos. O corpo do
Passarinho era quente e fofo. O Passarinho fechou os olhos também. O corpinho
do Joãozinho era muito magro, como uma marioneta de madeira. O seu Tomás era
muito magro também.
Na cama, os dois corpos abraçados estão a
dormir. Os dois parecem ser muito bem-amados entre si, exactamente como são
bem-amados entre si um pai ou uma mãe e o seu filho. Porque, se pudéssemos
entrar no coração de cada um, veríamos que o Joãozinho está com a Florida e que
o Passarinho está com o seu pequeno Tomás.
Numa casa pequena, não muito longe do
lugar onde está o nosso amigo, o senhor Pedro Pinheiro, empregado laborioso de
uma empresa têxtil durante vinte e nove anos, volta à sua cama, depois de ter
visitado o quarto de banho, por causa do próstata. A Gertrudes, a sua mulher,
está acordada também.
- Onde estavas? pergunta.
- Na casa de banho.
- Está a chover ainda?
- Não, ainda não. Foi uma tempestade e já terminou.
- Que horas são?
- As quatro e vinte. Volta a dormir. É
cedo ainda.
7. UM ACORDO CRIMINAL
O dia seguinte começou muito bem, com o
sol brilhando, como se fosse um dia primaveral. O Joãozinho, infelizmente, não
podia vê-lo, porque, como já dissemos, o quarto onde estava não tinha janelas.
Mas isto não o impediu de acordar de bom humour. Tinha sonhado com a mãe.
Estavam os dois no centro comercial. Ele brincava numa loja de brinquedos e de
repente, veio a Florida e regalou-lhe um carro vermelho, todo para ele. Ficou
tão feliz!
Quando acordou, claro, o bom humour sumiu.
Estava ainda naquele lugar horrível, sozinho na cama, porque o Passarinho já se
tinha levantado e tinha saído do quarto.
Deixaram-no dez minutos na casa de banho,
que cheirava mal e onde também havia uma barata que se escondia atrás da
sanita, e deram-lhe calças de ganga, que lhe ficavam compridos, e uma camisola
de lã vermelha. Também lhe deram um copo
de leite – quente, desta vez –, e um pastel de nata. Depois, mandaram-no ao seu
«quarto», fecharam à chave, e deixaram-no sozinho em casa, com a advertência de
parte do Maestro de portar-se bem durante a sua ausência, ou vê-lo-ia como
nunca mais, ninguém o tinha visto. Depois disto, e dado que não sabia como
romper a fechadura, o pobre Joãozinho ficou sentado na cama, sem ter nada para
fazer além de rezar. E enquanto ele rezava, os dois raptores foram à procura de
clientes.
O Maestro conhecia um tipo que trabalhava como
porteiro num orfanato. O homem chamava-se Nuno e além de trabalhar pelo
orfanato trabalhava por conta própria também. Se, por exemplo, aparecesse um
casal que queria adoptar um menino do orfanato, ele, sabendo bem que o processo
normalmente levava mais tempo do que o casal estava preparado para aguentar,
oferecia-se para ajudar a reduzir este tempo. O tempo que o casal «poupava»
assim, dependia do dinheiro que estava disposto a pagar. Até houve alguns
casos, onde o processo da adopção durou menos de um mês. Está certo que aqueles
casais, além de ter muita sorte, tinham também muito dinheiro.
Mas houve também muitos casos, onde
ninguém obteve o que queria: nem o Nuno ganhou dinheiro, nem o casal obteve um
filho. E foi nestes casos onde o Maestro punha todas as suas esperanças.
Porque, se houvesse um casal completamente decepcionado pelas vias legais de
adopção, seria uma vítima ideal e compraria sem mais nem menos aquele menino
antipático.
Passou um dia inteiro fora do orfanato,
mas sem sorte alguma. Ninguém visitou o lugar naquele dia, e o Maestro ficou
preocupado. Como diz o provérbio «tempo é dinheiro». Quanto antes conseguisse
vender o menino, tanto melhor seria para ele. Mas o tempo passava sem
resultados e isto não era bom sinal. Pensou nos prós e contras de cada opção
que tinha enfrente e decidiu pedir a ajuda do Nuno. Claro, a ajuda do Nuno
costava, mas ele estava preparado a pagar qualquer preço.
Tocou a campainha. O Nuno apareceu na
porta, dizendo que já passava da hora das visitas, mas quando reparou no
Maestro parou de falar e fez um gesto que somente eles dois sabiam como decifrar.
Meia hora mais tarde, os dois
encontraram-se num parque perto do orfanato. Depois das primeiras palavras
típicas de qualquer encontro, chegou a hora de falar de negócios. O Nuno não
era tipo de perder tempo e o Maestro tinha pressa. Então, o Maestro pediu a
Nuno para lhe dar alguns datos de casais que tinham passado pelo orfanato
ultimamente sem conseguirem adoptar nenhum órfão. O Nuno pediu comissão, exactamente
como esperava o Maestro.
- É pouco, disse o Nuno quando o Maestro
lhe disse o que lhe oferecia.
- Pelo contrário, respondeu ele. É muito
mais do que ganhas em seis meses pelo menos, ou me equivoco?
- O custo depende do risco. Sabes muito
bem que se me apanharem vou perder o meu trabalho. Tu que vais perder?
Absolutamente nada. Ou me equivoco eu?
- E que é o que queres? Diz-me lá.
- Vinte por cento.
- És um ladrão!
- Ladrão, eu? Deus me livre! Eu sou
simplesmente um fornecedor de informação. O ladrão és tu, querido Manuel. Ou,
preferes o título de raptor?
- Fala mais baixo, idiota! Nem a ti te
serve que nos oiçam. E não digas o meu nome verdadeiro outra vez. Chamo-me
Maestro, percebeste?
Olhou para um lado. Duas mulheres passavam
falando em voz baixa. Os dois homens calaram e quando as duas mulheres se
afastaram bastante, recomeçaram a falar.
- O preço não se negocia, disse o Nuno.
Vinte por cento é o preço para os amigos. Se não te conhecesse, pedia pelo
menos trinta.
- Não posso dar-te tanto, disse o Maestro.
Se te dar vinte por cento, não vai ficar quase nada para mim.
- Achas que sou estúpido, ou quê?
- Não, claro que não. O que te digo é a
pura verdade.
- Pois eu acho que na vida há muitas
verdades. A minha verdade, por exemplo, diz que se estamos aqui a negociar o
preço da informação que te posso dar é porque tu não podes estar com um cliente
a negociar o preço de um menino. E sabes porque não podes negociar com o
cliente? Simplesmente, porque não há cliente. E não há cliente, porque
trabalhas sozinho, senão agora os teus sócios teriam encontrado pelo menos um
cliente para ti.
Olhou directamente nos olhos do Maestro.
- Ou me equivoco? adicionou.
O Maestro não disse nada. Odiava não poder
controlar a situação. Este Nuno era sempre muito difícil. O problema era que
precisava dele.
- Bom, disse o Nuno, não acho que tenhamos
mais para dizer. Sabes muito bem onde me podes encontrar. Adiós.
- Espera, canalha, está bem. Vinte.
Os dois homens deram as mãos.
- Às seis, disse o um.
- Às seis, repetiu o outro.
Desde o ramo mais alto de um choupo,
ouviu-se o canto de um cotovia, selando o acordo.
8. DESESPERADA
Vinte e quatro horas não passam
facilmente, especialmente quando uma pessoa conta os minutos, como fez durante
toda a noite a pobre Florida. A alba encontrou-a onde a deixámos nós, sentada
na cadeira, com a camisa do Joãozinho nas mãos.
Os raios do sol caíram nas suas faces
pálidas e obrigaram-na a fechar os seus olhos. Depois, levantou-se e foi ao
telefone. Telefonou ao seu trabalho para dizer que não ia e voltou ao seu
posto.
Foi ao meio-dia quando o seu rosto pareceu
acordar. O sol já estava alto no céu e nas escolas do país as campainhas
soavam, assinalando assim o fim das aulas. Miles de crianças de todas as idades
saíam das aulas e voltavam para casa. Era hora de ir à Polícia outra vez.
Penteou-se, pôs o seu sobretudo e saíu.
E ei-la, agora, que está a andar a grandes
passos na rua. Muita gente, que também está na rua, faz o caminho dela mais
difícil, porque de instante em instante está obrigada a parar para não embater
com alguém. Mas todos os seus movimentos são mecânicos, fazem-se sem ela pensar
neles. O olhar dela permanece vazio, ausente, porque o seu pensamento está
longe. Cuidado!
Um carro que estava a correr por pouco não
a atropela. Felizmente, o condutor pára a tempo. A Florida fica imóvel um
bocadinho e depois continua o seu caminho. Uma mulher pergunta-lhe se está bem.
Ela nem sequer a ouve. O posto da Polícia já está perto. Faltam só alguns
metros. Agora faltam alguns passos. Já não falta nada. Está no escritório do
comissário.
Fazer uma declaração de ausência não é uma
coisa fácil, especialmente para uma mãe, porque é como se a mãe aceitasse a
possibilidade de não voltar a ver o filho, e isto é muito doloroso. Mas é uma
coisa que deve ser feito, para a Polícia poder começar as investigaçôes. Então,
a Florida responde a todas as perguntas que lhe fazem.
Se o seu filho tem desaparecido outra vez?
Não, claro que não. Como é? Loirinho, magrinho, alto até aqui (e a Florida leva
a sua mão até à sua barriga) e com olhos azuis. O que levava no dia que
desapareceu? Umas calças azuis escuras, uma camisa amarela de lã e um sobretudo
castanho claro. E um cachecol às riscas. Onde foi que desapareceu? No centro
comercial. Tem alguma fotografia dele? Sim, ei-la.
Um polícia toma nota de tudo o que a
Florida diz. Aponta também a ropa que o Joãozinho levava, embora nós saibamos
que esta informação não vai servir muito, já que o nosso amigo leva outra ropa
agora. O comissário pergunta se a Florida não tem alguma outra fotografia mais
recente. Porque nesta fotografia há uma criança pequena, possivelmente de dois
anos e o Joãozinho tem seis. Infelizmente, não tem. Mas o seu filho não tem
mudado, é igualzinho. Só os dentes de frente mudaram. Do resto é a mesma
pessoa.
O comissário toma a fotografia. Não está
muito optimista, mas não diz nada à Florida. Ele também tem filhos e não quer
nem imaginar como seria perdê-los. Está bem, diz. Vão mantê-la informada, que
não se preocupe. Agora já pode ir-se para os deixar trabalhar. Bom dia.
9. UM ANJO PARA A BEGONHA
A senhora Begonha Rodrigues estava a ver
televisão. Estava a ver uma telenovela brasileira. Adorava as telenovelas,
porque sempre terminavam bem. Pela mesma razão não gostava das notícias, porque
quase sempre eram más. O seu marido, porém, odiava as telenovelas e adorava as
notícias. E o futebol. Às vezes, não sabia porque tinham casado. Que tinham em
comum, se nem sequer um programa da televisão podiam ver juntos?
Mas a verdade é que o Eugênio era um
marido quase exemplar. Era honesto, trabalhador, não bebia, não jogava às
cartas como o marido da infeliz da sua irmã, não a batia, como faziam outros
maridos... Era um marido como poucos e seria um pai muito bom, também, se Deus
quisesse dar-lhes um filho. Mas, já eram casados havia quase vinte anos e,
infelizmente, não tinham filhos.
Tinham ido a muitos médicos, tinham feito
inumeráveis análises, sem conseguirem nada. Depois de muitas decepções,
pensaram em adoptar uma criança. Mas, nem isto conseguiram. No orfanato, onde
foram para ver se poderiam adoptar um órfão, disseram-lhes que não satisfaziam
as condições. Eram maiores de idade e o orfanato preferia dar as crianças a
casais mais jovens. E o amor que eles tinham para dar? Conta-se o amor pela
idade que se tem? Sentiam-se muito, disseram, mas havia regulamentos. Que se
pode dizer? Algumas pessoas não têm nada de sorte.
O telefone soou justamente quando a Marina,
a protagonista da telenovela, visitou o dom Rogério para lhe revelar que ela
era a sua filha perdida. A Begonha, baixou o som da televisão e pegou a sua
orelha no auscultador.
- Estou, disse mas isto não era
exactamente a verdade, já que a Begonha estava na televisão. A Marina estava a
chorar. O dom Rogério parecia muito surpreendido. Estou, disse outra vez.
Do outro lado da linha ouviu-se uma
desconhecida voz masculina.
- Boa noite, disse a voz. Estou a falar
com a senhora Begonha Rodrigues?
- Sim, senhor, sou eu. E o senhor, quem é?
- É verdade, continuou a voz, que a
senhora, junto ao seu marido, visitou o orfanato «O bom Jesús» no mês passado?
O coração da Begonha deu um salto. Na
televisão, o dom Rogério abraçou a Marina.
- Sim, é verdade, sim senhor. Mas, com
quem estou a falar, se faz favor?
- Doutor Alves, seu servidor.
- Doutor Alves? Não conheço nenhuma pessoa
deste nome.
- Sim, é verdade. A senhora não me
conhece.
- E que é que o senhor quer de mim?
- A senhora não conseguiu adoptar nenhum
órfão do orfanato, não é verdade?
- Sim, é, mas o senhor que tem a ver com
isto?
- Vou entrar directamente no tema, senhora
Rodrigues. Já que a senhora não conseguiu adoptar um menino a causa do regulamento
do orfanato, estaria interessada por uma adopção particular?
- Particular, como?
- Eu sou advogado. No outro dia recebi a
visita de um senhor, que tem um filho de seis anos. O senhor é viuvo há dois
anos e há alguns meses perdeu o seu trabalho também. Não tem meios económicos
para poder oferecer ao seu filho o que devia e pensou em dar o seu filho para
ser adoptado por uma família boa. Assim, o seu filho vai ter toda a atenção que
merece. Então, o senhor pediu-me para eu encontrar um casal que fosse
interessado. Dado que tenho um primo no orfanato, pedi-lhe os datos dos casais
que passaram por ali sem conseguir adoptar um filho. A senhora e o seu marido
parecem o casal ideal para a criança.
- Mas o meu marido e eu, já não somos
jovens. Talvez não seja boa ideia...
- Mas que ideia tão absurda! Ao contrário,
senhora Rodrigues, quem mais podia amar uma criança tanto como uma mulher que é
madura e estável e tem experiência e sabiduria? Eu acho que a senhora é a mãe
ideal para aquele menino. E, falando do menino, a senhora deve saber que se
trata de um menino muito bom, loirinho como um anjo...
Loirinho, pensou a Begonha, como é o
Eugênio! Que sorte! E, sim, era verdade: quem mais podia amar o menino como
ela?
- E como podemos adoptá-lo? perguntou.
- Então, a senhora está interessada?
- Estou, sim.
- Neste caso não deve preocupar-se. Eu vou
ocupar-me da parte burocrática da adopção. Vou falar com o pai, vou preparar os
papeis, os senhores não deverão fazer quase nada. Somente...
- Somente, quê?
- Bom, o pai do menino foi obrigado a
pedir dinheiro emprestado quando a sua mulher adoeceu, há quatro anos. Depois, ficou
sozinho com o seu filho e precisou de mais dinheiro. Mais tarde, perdeu o
trabalho e a sua situação piorou. Agora já deve muito dinheiro e não sabe como
o devolver. É provável que vá à cadeia se não pagar o que deve.
- É muito? Quanto é?
Quanto? A Begonha pensou nas suas
poupanças que quase não chegavam para pagar a soma.
- É muito, disse.
- Sim, o dinheiro emprestado não foi
tanto, mas com os juros...
- Mas nós somos gente pobre. Não temos
tanto dinheiro.
A Begonha sentiu que o anjo loiro estava a
afastar-se dela.
- Vou ver o que posso fazer, disse o
advogado. Entretanto, a senhora converse com o seu marido e pensem no assunto.
Amanhã telefono-lhe outra vez. O pai tem pressa e há mais três casais que devo
considerar. Boa noite.
10. UM COMISSÁRIO COM SENSIBILIDADE
O comissário Santos está no seu
escritório. Durante a sua longa carreira viu muitos casos como o do Joãozinho.
Pensa que provavelmente o menino fosse raptado. É muito pequeno para querer
ir-se embora, e a mãe parece tão carinhosa...
Olha para a fotografia. Que pena que não
haja outra, mais recente. Mas, vamos, tem de continuar a investigação com os
meios que tem. Não é por coincidência que o consideram um comissário capaz.
- Vamos ao centro comercial, diz a um policia.
No centro comercial há muita gente. O
comissário não gosta da multidão, mas tem de fazer o seu trabalho. Com a
fotografia do menino nas mãos, entra nas lojas e pergunta às pessoas que
trabalham lá se têm visto um menino loiro, que é tão alto (e levanta a mão ao
nível do seu barrigão) e parece ao menino da fotografia, mas já tem mudado os
dentes de frente, e no dia anterior, quando desapareceu, usava calças azuis
escuras, camisa amarela, sobretudo castanho claro e um cachecol às riscas. As
pessoas olham para a fotografia, procuram lembrar, mas dizem que não viram
nenhuma criança assim. E o comissário continua o seu trabalho, perguntando e
mostrando a fotografia.
Uma empregada diz que viu um menino
loirinho que parecia ao menino da fotografia, mas, espere um momento, era mais
alto e usava casaco aos quadrados. Não, não era ele.
Mas um guarda lembra-se do menino. Sim,
viu-o há dois dias. Estava com uma mulher jovem e bonita, provavelmente com a
sua mãe. Iam para o sector dos brinquedos. Mais tarde viu a mulher outra vez,
mas ela estava sozinha. Não viu o menino? Não senhor, não o viu, sente muito.
Há outras saídas no edifício? Sim, senhor, mas normalmente não estão abertas.
Só em caso de emergência é que as saídas se abrem à gente. Podia alguém, que
conhecesse onde ficavam aquelas saídas, ter saído através de uma delas? Não,
senhor, porque há guardas perto de todas as saídas. Tem certeza que não viu o
menino sair do centro? Sim, senhor, não o viu, mas isto não quer dizer que o
menino não tenha saído dali. Claro que não. Se se lembrar de alguma coisa, por
favor, eis o número do telefone pessoal do comissário. Pode telefonar a
qualquer hora. Sim, senhor, que fique tranquilo. Bom dia.
O comissário fica decepcionado. O que vai
dizer à pobre mãe? Não quer dar esperanças falsas, mas também não quer matá-la.
Um comissário eficaz tem de ser psicólogo também.
Estamos ainda no início das investigações,
diz à mãe. Pelo momento temos de analizar as informações que nos deram várias
pessoas. Alguém o viu? pergunta ela. Sim, mas ainda é muito cedo para dizer
qualquer coisa sobre o assunto. A senhora tem de ter paciência.
11. ADOPÇÃO ENTRE BOCEJOS
A Begonha e o Eugênio foram ao escritório
do doutor Alves. O escritório era muito pequeno e escuro. Havia só uma
secretária, três cadeiras e uma pequena biblioteca com alguns livros. O doutor
Alves recebeu-os cortesmente. Tinha um rabo de cabalo, coisa estranha para um
advogado, mas estava bem-vestido e tinha o ar de uma pessoa que conhece a lei.
O doutor Alves convidou-os a se sentarem
nas duas cadeiras que havia no escritório.
- Para dizer a verdade, estou muito
comovido, disse. Porque em casos como este sinto que faço algo mais do que uma
profissão. Sinto que o que estou a fazer é um serviço à sociedade. Porque com
esta minha intervenção , um menino desgraciado vai ter um futuro.
Enxugou uma lágrima e continuou.
- Eu também venho de uma família muito
pobre, e se não fosse pelo meu querido senhor Felizardo Castro Dos Reis, que se
ocupou de mim como se eu fosse filho seu e que me ajudou financialmente, agora
não sei onde estaria. Devo a minha vida inteira àquele homem, foi como um pai
para mim.
Enxugou mais uma lágrima.
- Para ser sincero, disse o Eugênio, eu
não estava muito a favor desta adopção, mas a minha querida mulher, insistiu
tanto que tive de concordar. Porque, sabe, doutor, as adopções particulares
parecem-me um bocadinho fora da lei...
O advogado pareceu ofender-se.
- Por favor, disse, se isto fosse ilegal,
eu nunca me interviria. Sou uma pessoa séria. Consultei o código legislativo
antes de dar a minha aprovação.
- Aliás, continuou o Eugênio, nós somos
pobres, e por esta adopção vamos dar todas a nossas poupanças. Não vai ficar
nada para o miudo. Não sei se isto é prudente...
- Mesmo assim, disse o doutor Alves, o
menino estará muito melhor convosco. Com o seu pai não vai ter absolutamente
nenhuma oportunidade na vida. Ele não ganha bastante nem sequer para se
sustentar a ele próprio... Os senhores vão ter um posto ao lado do nosso
Senhor, quando vir a hora de deixar este mundo, asseguro-vos.
Alguém bateu à porta.
- Já chegaram, disse o doutor Alves.
Entrem, disse em voz alta.
A porta abriu e entrou um homem com um
menino. O homem era gordo, calvo e tinha grandes bigodes. O menino era magro e loiro.
Era verdade: era como um anjo! Mas não se parecia nada ao seu pai.
- Bom dia, senhor Mendes, disse o doutor
Alves. Bem-vindos. Por aqui estão os senhores Rodrigues, que vão adoptar o
menino.
- Muito prazer, disse o senhor Mendes,
embora a palavra prazer não seja a palavra mais adequada para um pai que se vê
obrigado a se separar da coisa mais importante na sua vida. Mas, a vida é
difícil e...
- Não se preocupe, senhor Mendes, disse o
advogado. Os senhores Rodrigues sabem muito bem a sua situação e não o julgam,
asseguro-lhe.
Os senhores Rodrigues mexeram as suas
cabeças, concordando com o advogado.
- Tenho aqui os papeis, disse o advogado.
A única coisa que falta são as vossas assinaturas. Quanto ao dinheiro, os
senhores Rodrigues vão dar o dinheiro que o senhor precisa para poder continuar
a sua vida como membro honorável da sociedade, com a cabeça alta, não se
preocupe.
- Quero a minha mãe, disse o menino.
- Coitadinho, disse o senhor Mendes e
bocejou. Desde quando perdeu a mãe não a pode esquecer.
- Como te chamas, querido? perguntou a
Begonha.
- Chamo-me João Pestana.
- Que nome tão bonito! disse a Begonha e
bocejou ela também. Mas o teu apelido não é Mendes?
- Bom, disse o senhor Mendes. O seu nome
inteiro é João Pestana Mendes De Olmos, mas ele prefere o apelido Pestana
porque era o apelido da sua pobre mãe...
- A minha mãe está viva, disse o
Joãozinho. Estes dois homens estão a mentir! Têm-me preso num quarto pequeno e
não me deixam voltar à minha mãe, que estará tão triste.... Eu não quero outra mãe!
- Mas como? O senhor Rodrigues não é o teu
pai? Meu Deus, quase não posso falar. Aaaaaa... Desculpe-me. Normalmente não
costumo...... aaaaaaa.... bocejar. É a primeira vez. Aaaaaaaaa...... O que me
aconteceu?
- Eu também, aaaaaaa.... Se pudesse deitar-me
um bocadinho....
- Não se preocupem, senhores, aaaaaaaaa....,
não é nada, só faltam as assinaturas.... aaaaaaaaaaaaaaa...... aqui.....
Os quatro adultos que estavam no
escritório adormeceram. O Joãozinho estava livre.
Apressa-te, Joãozinho, pensou. Tens de
afastar-te deste lugar, antes dos dois homens acordarem. Sem pensar mais, o
menino abriu a porta e saíu correndo.
12. UMA NOTÍCIA INQUIETANTE
O senhor Filisberto era um homem que gostava
de estar informado sobre a actualidade. Cada dia, quando ia ao seu café
preferido, sentava-se na sua mesa e abria o seu jornal para se informar sobre o
que acontecia no mundo. Depois, quando chegavam os seus amigos, para tomar café
e para jogar a dominó, ele informava-os sobre as últimas notícias,
comentando-as também.
Hoje também o senhor Filisberto está no
seu posto, a ler o seu jornal. O jornal de hoje não é muito diferente do jornal
de ontem. Decisões do governo, reacções de sindicatos, declarações de pessoas
de política, artigos de economia, de ciência... Os amigos dele jogam ao seu
lado, comentando a partida. O senhor Filisberto responde, às vezes, mas é,
quase completamente, absorbido pelo que está a ler. «Aumentou-se a diferença
entre ricos e pobres.» Que novidade! «Novos datos provam que o nível de vida
baixou.» Não me digam! «Menos sono significa menos éxito em todos os aspectos
da vida. Os segredos para um sono benéfico.», «A depressão. Uma doença do nosso
tempo.»
- O que há no jornal, Filisberto? pergunta
o senhor José. Alguma novidade?
- A mesma coisa, mais ou menos, responde
ele. A depressão, diz, é uma doença do nosso tempo.
- Nenhuma novidade, então. Porque não
deixas de ler? Joga connosco.
- Não é assim. As pessoas têm de se
manterem informadas. Ainda não li o jornal inteiro. Pode haver alguma coisa
interessante. Vocês continuem.
- Eu também lia o jornal todos os dias, diz
o senhor Rodrigo, o outro amigo do senhor Filisberto. Chegou, porém, um dia,
quando pensei que as notícias que são verdadeiramente importantes não estão nos
jornais. A vida está fora dos jornais, não está dentro deles.
- A vida não está dentro dos livros
também, mas gostas de ler livros, responde o senhor Filisberto.
- Sim, mas os livros não pretendem tomar o
posto da verdade. Quando leio um livro, sei muito bem que se trata de ficção.
À duas mesas dos três homens, a Florida
está a limpar. Terminou o seu trabalho na cozinha e está a limpar as mesas
vazias do café. Tudo o que faz é feito mecanicamente. Os seus pensamentos
viajam longe dela. Dois dias já passaram e não há nenhuma notícia do
comissário. Talvez tenha de visitá-lo outra vez. Sim, hoje mesmo, quando
terminar o seu trabalho, vai directamente à Polícia. Não pode esperar mais.
Qualquer informação sobre o seu filho, ajuda-la-á a aguentar aquele martírio.
- Eis uma notícia diferente, diz o senhor
Filisberto. «Bando criminal brasileiro com ligações no nosso país. Procuram-se
pelo menos dez pessoas. A Polícia brasileira declarou que foi descoberto um
perigoso bando criminal. Os criminais do bando cometeram muitos crimes durante
a última década. Entre os vários crimes que cometeram, também foram implicados
em casos de raptos infantis, especialmente no Brasil. Os casos não estão
resolvidos ainda mas a Polícia receia que os meninos fossem raptados com a intenção
de fornecer o mercado negro com órgãos humanos. O comissário Aristides Ramos,
chefe das investigações, informou o nosso correspondente que a Polícia já está
à procura das ligações portuguesas. Segundo o comissário, é provável que o
bando tivesse procurado vítimas no nosso país também.» Em que mundo vivemos,
meu Deus! Mas, o que aconteceu? A mulher desmaiou! Água, por favor!
- Senhora, está bem? Senhora, o que
aconteceu?
- Florida, o que aconteceu, querida?
Ouves-me? Florida!
- Eis a água! Por favor, façam espaço. Não
vêem que a mulher desmaiou?
- Há algum médico?
13. CORRIDA PARA A SALVAÇÃO
A rua estava deserta. O Joãozinho olhou
para os dois lados. À direita, não muito longe, havia um parque. À esquerda,
havia casas com jardins. Não conhecia aquele lugar. A paisagem era muito
diferente do seu bairro. Só o céu parecia ser o mesmo. Havia algumas nuvens no
céu.
Escolheu o lado esquerdo e começou a
correr. Aonde iria? Não sabia, mas tinha de ir longe daqueles homens tão maus.
Bom, o Passarinho não era tão mau, mas o Maestro certamente era muito cruel.
Correr! Quem podia imaginar que podia escapar tão facilmente? Correr! Quanto
tempo tinha à sua disposição? Não sabia. Correr, então!
Se soubesse como, iria para casa, mas não
sabia onde estava. À Polícia! Isto era boa ideia. Mas, onde havia um posto de Polícia?
Correr!
Correu um pouco mais e depois parou. Quase
não podia respirar. Com sopros rápidos e curtos procurava sentir melhor. Sentia
que os seus pulmões estavam a queimar. Cada sopro provocava-lhe dor. Não podia
correr mais, mas também não seria boa ideia ficar lá onde estava porque,
certamente, os homens correriam atrás dele quando acordassem.
Não havia gente na rua. Como podia perguntar
onde havia um posto de Polícia? Seria boa ideia bater à porta de uma casa
desconhecida? E se as pessoas que lá viviam eram pessoas más? Tinha perdido
toda confiança na natureza humana.
Mas se ficava lá, no meio da rua, mais
cedo ou mais tarde os homens iam encontrá-lo. Tinha de tomar uma decisão,
imediatamente.
Virou à direita e encontrou-se numa rua
tranquila. Pelo menos não estava na rua principal e os homens precisariam de
mais tempo para o encontrar. Sentiu-se mais calmo. A sua respiração melhorou um
pouco.
E agora, como escolher a casa onde
procuraria ajuda? A rua estava cheia de casas baixas e não muito ricas, mas
tinham todas jardins. Era um bairro bonito. Olhou para atrás. Não havia
ninguém.
Desde uma casa que estava em frente, uma
criança pequena estava pegada no vidro de uma janela grande. Dali, o miudo
olhava para ele e mexia a sua maõzinha, cumprimentando-o. Uma casa com uma
criança não seria uma casa com pessoas más. O Joãozinho levantou a mão e
cumprimentou também. O miudo pareceu muito contente e agora tocava o vidro com
a sua mãozinha como se fosse um tambor.
Eis a casa da minha salvação, pensou o
Joãozinho, mas justamente então ouviu vozes às suas espaldas. Havia gente
naquela casa, gente maior. Olhou para o jardim. Era muito bem-cuidado. Quem
amava as flores, não podia odiar as pessoas.
O Joãozinho olhou para a casa de em frente
e cumprimentou outra vez o miudo da janela. Depois, entrou no jardim.
14. FURACÃO NO ESCRITÓRIO
O comissário Santos não era um homem
difícil. Comia de tudo e não precisava de muito para estar contente. A sua
mulher era uma mulher sortuda. Porém, cada dia a senhora Santos telefonava ao
seu marido para lhe perguntar sobre o que queria que ela cozinhasse.
Hoje também, a senhora Santos telefonou ao
seu marido. A comida do dia seria bacalhau ao bras, o prato favorito do
comissário, mas mesmo assim ela tinha de perguntar se ele gostava da ideia.
Sim, disse ele, era uma óptima ideia. A senhora Santos foi satisfeita pela
resposta e informou-o também que iria à escola dos seus filhos para assistir na
festa que davam para festejar antes das férias do Natal. Então, ia apagar o seu
telemóvel durante uma hora. Avisava-o para não se preocupar em caso que lhe
telefonasse. O comissário prometeu que não ia telefonar, nem ia preocupar-se
durante aquela hora.
Gostaria muito de poder ir à festa dos
seus filhos, mas tinha de trabalhar. Havia um menino que tinha desaparecido, e
ele ainda não tinha conseguido nada. O que diria à mãe? Tinha-lhe prometido que
a manteria informada, mas nem sequer ele tinha bastante informação.
E eis, agora, que um policia entra no
escritório do comissário, dizendo que a mãe do menino desaparecido veio a pedir
informações sobre as investigações. Pode passar, diz o comissário.
A mulher que entra parece ser uma outra
mulher. É muito pálida, como se tivesse visto um fantasma, e parece ter
envelhecido dez anos pelo menos. A Florida entra no escritório como um furacão.
- Onde está o meu filho? pergunta. O que
aconteceu com ele? Porque não me diz?
- Calme-se, senhora, diz o comissário.
Sente-se, por favor.
- Não é hora de me acalmar, responde ela.
Porque não me diz a verdade?
- Senhora Pestana, aseguro-lhe que não
temos nenhuma novidade sobre o seu filho...
- Por favor, diz a Florida e as lágrimas
caem nas suas faces, o senhor pode dizer-me. Sou forte, vou aguentar. Diga-me:
foi raptado pelo bando brasileiro?
- Qual bando brasileiro?
- O bando do que está a falar o jornal. É
verdade? Raptaram o meu filho para lhe sacar ... os órgãos? A Polícia encontrou
o seu corpinho?
A Florida não consegue continuar. Não pára
de chorar.
- Calme-se, senhora, por favor, diz o
comissário e oferece-lhe uma cadeia. Sente-se aqui. Traga um copo de água, por
favor, diz ao policia que está na porta.
- Porque não me diz? pergunta a Florida.
O comissário pensa. O que pode dizer? Ele
não sabe nada. As informações que tem são tão poucas que não podem servir para
nada. Mas a mulher precisa de uma resposta. Tem de se comportar como psicólogo
outra vez.
- Senhora, ainda é muito cedo para saber
onde exactamente está o seu filho, mas vou dizer-lhe o que sabemos até agora.
A Florida olha para ele directamente nos
olhos.
- Bom, continua o comissário, é muito
provável que o seu filho foi raptado, como a senhora disse, mas (e acentua a
palavra «mas»), mas, repito, os raptores parecem ser coincidenciais, quer dizer
que não pertencem nos chamados «criminais organizados».
A Florida olha para ele sem pestanejar.
- Isto é um bom sinal, porque os criminais
coincidenciais são mais fáceis de encontrar.
A Florida parece acalmar-se. O comissário
respira e continua.
- A Polícia acha que o seu filho está vivo
e está bem e eu, pessoalmente, espero que muito pronto o pequeno João estará
consigo, senhora. Senhora, sinceramente, deixe à Polícia fazer o seu trabalho.
Os nossos agentes trabalham dia e noite para chegarmos ao resultado desejado o
mais cedo possível. Eu, pessoalmente, me ocupo do caso e não vou desistir antes
de encontrar o seu filho. A senhora tem a minha palavra de honra.
Abre a porta, vem o policia com um copo de
água.
- Por favor, diz o comissário, beba um
pouco de água. A senhora está pálida.
A Florida toma o copo, e bebe um pouco.
- O meu filho é tudo para mim, diz. Sem
ele, a minha vida não vale nada.
- Seja optimista, diz o comissário. A
maioria dos casos deste tipo resolvem-se. Nada está perdido, ainda estamos no
início das investigações. Confie em mim. Vou resolver o caso.
- Muito obrigada, senhor comissário. E
desculpe-me por ter falado assim, mas é por causa da desesperação.
- Não faz mal, não se preocupe. É normal.
E agora, se a senhora me permite, tenho de voltar ao trabalho.
- Pois, claro, vou-me embora. Eu também
tenho de voltar ao meu trabalho. Desculpe-me outra vez. Bom dia.
- Bom dia.
- Se souber alguma coisa, por favor,
avise-me.
- Não se preocupe.
O comissário fica sozinho no escritório.
Que trabalho tão difícil! O policia entra outra vez no escritório e leva o copo
de água que trouxe para a Florida.
- Traga-me os jornais de hoje, diz o
comissário.
Qual é o bando brasileiro?
15. UM CUMPRIMENTO INESPERADO
- Miau, disse o Cravo, o gato ruivo da
dona Amália e saltou sobre a cama dela.
A dona Amália abriu os olhos. Era cedo
ainda, mas segundo o Cravo, era já hora de se levantar.
- Bom dia, Cravinho, disse a dona Amália.
Como estás hoje?
- Miau, disse ele e continuou a dar voltas
sobre a cama.
- É já hora de saires, não é? Bom, então.
Levanto-me e abro-te a porta. Não te preocupes.
O Cravo saíu fora para dar a sua volta
matinal, e a dona Amália foi à cozinha.
- Bom dia, Rigoleto, cumprimentou o seu
canário amarelo, que respondeu, chilrando e dando saltos na sua gaiola. Tudo
bem?
O Rigoleto começou uma canção alegre.
- Estás de bom humour hoje, não é,
querido? Sim, tens razão. É um dia muito bonito. Frio, sim, mas parece que vai
haver sol. E o sol para as pessoas da minha idade é pura benção.
O Rigoleto continuava a cantar.
- Que melodia tão bonita, meu Rigoleto!
Nunca mais ouvi outro canário cantar como tu. És um fenómeno, sabes? Espera um
bocadinho e vou dar-te água fresca. Depois, vou preparar um ovo para comeres e para
te tornares mais forte. Sabes, todos os profissionais da canção comem ovos para
manter a voz em boa condição. Que dizes? Pois, não exagero, não senhor. Só digo
a verdade.
O Rigoleto deixou de saltar e foi beber
água fresca. Cantar sempre provoca sede. A dona Amália escolheu um ovo do
frigorífico e pô-lo numa caçarolinha.
- Mais tarde vou dar-te algumas vitaminas
que comprei do senhor Perreira no outro dia. Disse-me que são muito boas. Vais
ver.
A dona Amália vivia com os seu canário e o
seu gato desde que o seu marido morreu. Não tinha filhos e não tinha familiares
que vivessem perto dela. Os dois animais, então, que viviam com ela, eram como
membros da sua família. Falava-lhes como se fossem humanos e pudessem conversar
com ela. E muitos vão dizer que era exactamente assim, porque muitas vezes
pareciam perceber o que ela estava a dizer.
Com o Cravo e o Rigoleto, então, a vida da
dona Amália era uma vida simples e tranquila. Cada dia fazia as mesmas coisas,
mais ou menos. Levantava-se muito cedo, abria a porta para o Cravo sair, mudava
a água do Rigoleto e dava-lhe para comer, preparava um cafezinho com pouco
açúcar e bebia-o no salão, perto da janela, e depois fazia os trabalhos de
casa: limpava a casa, preparava a sua comida, lavava a ropa... O Cravo voltava ao
meio-dia com muita fome, ela dava-lhe de comer na cozinha e comia ela também,
depois descansavam ambos durante uma hora e pois saíam ao jardim, para ela cuidar
as suas flores.
Porque a dona Amália, além do Cravo e do
Rigoleto, tinha também muitas plantas e estava muito orgulhosa delas. Era
verdade que todas as suas vizinhas olhavam para o seu jardim com inveja, porque
elas nem podiam sonhar com um jardim tão bonito. Se houvesse um concurso entre
os jardins do bairro, o seu jardim ganharia o maior prémio, sem dúvida alguma.
Certamente, isto não era coincidência,
porque a dona Amália adorava as suas plantas e tratava-as como pessoas.
Falava-lhes, punha música clássica no rádio para elas ouvirem, porque sabia que
as plantas – especialmente as rosas – gostam da música clássica, regava-as
frequentemente, dava-lhes adubo para se tornarem fortes, em geral dava-lhes
toda a atenção que precisavam.
Quando, então, a dona Amália descansou,
depois de ter feito todos os seus trabalhos e de ter comido junto ao Cravo, saíu
ao jardim. Nesta época do ano, o jardim não estava na melhor condição possível,
porque nesta época do ano, quer dizer no Inverno, as plantas dormem e descansam
para poder florecer na Primavera. Mesmo assim, porém, a mulher incansável tinha
de ver se tudo estava em ordem.
Saíu, então, ao jardim e começou a falar
às suas plantas: Olá, senhor rosmarinho. Tudo bem? Permita-me dizer que hoje
tem um aspecto óptimo. Ó, senhora azaleia, hoje a vejo um pouco deprimida. Tem
frio? Sim, é verdade, ainda está frio, mas não se preocupe, a Primavera não
tardará. Aguente um bocadinho mais, está bem? Que prazer, senhora rosa! Não
vejo a hora para a Primavera chegar e para ver as suas flores. Quantos vai dar
este ano? Sim, sim, fique tranquila, hoje também vai haver música como todos os
dias. Gosta de Verdi? Ó, senhora amendoeira, bom dia! Já está a preparar-se
para florecer? Tem sempre tanta pressa! Não se esquece, é muito cedo ainda.
Senhor limoeiro, é sempre tão bonito, tem uma beleza que não conhece épocas. E
as suas folhas são tão perfurmadas! Mas parece ter sede. Espere um momento e
vou regà-lo, não se preocupe.
Assim falando, a dona Amália chegou à
camélia. E esta camélia era um milagre da natureza. Era alta, robusta, com folhagem
densa e brilhante e estava cheia de botões. Provavelmente a dona Amália teria
de cortar alguns botões para fortalecer a planta. Sentia muito que tinha de
provocar dor à pobre camélia, mas estava certa que a camélia entenderia.
Aproximou-se da camélia e cumprimentou-a.
- Bom dia, senhora camélia, sei que não
vai gostar, mas tenho de cortar alguns botões para o resto dos botões se tornarem
mais fortes, disse. É para o bem da senhora, a senhora entende, não?
Podem, agora, imaginar a surpresa da dona Amália,
quando a camélia lhe respondeu timidamente: Bom dia, senhora!
16. ENTRE COMISSÁRIOS
O comissário acabou de ler o jornal. Não
gostou nada do que leu. Será possível? pensa. O pequeno desaparecido foi
raptado pelo bando? Que mudança tão desagradável! E ele prometeu à mãe do pobre
menino que ia resolver o caso! Tem de pedir informação sobre o bando. Como se
chama o chefe das investigações?
- Telefonem ao comissário Ramos, diz.
Quero falar com ele.
Ele e o comissário Ramos conhecem-se desde
os anos da academia policial. Naquela época, ambos eram muito jovens e achavam
que podiam salvar o mundo, como todos os jovens pensam. Com o tempo passar,
ambos também deram conta que salvar o mundo é uma tarefa muito difícil mesmo.
O telefone soa duas vezes.
- Estou, diz o comissário.
- O comissário Ramos está na linha, ouve-se
a voz de um policia.
- Muito bem, passe-mo. Bom dia Aristides,
diz quando ouve a voz do seu amigo. Sou eu, Andrés. Tudo bem?
- Olá, Andrés, tudo bem, sim. Só que me encontras
muito ocupado. Ouviste falar do bando brasileiro, não é?
- Pois sobre isto queria falar-te.
- Tens alguma informação para mim?
- Não, ao contrário, esperava que tu
pudesses ajudar-me a mim.
- Ajudar-te? Como?
- Tenho um caso de rapto infantil. Não
tenho muitas evidências e procuro eliminar as hipóteses, para chegar a um
resultado. Este bando brasileiro está implicado em casos de raptos infantis?
- No Βrasil, sim. No nosso país, ainda não sabemos.
Estamos à procura das ligações portuguesas, mas ainda não temos nenhum preso.
As informações que temos são vagas e vêm todas da Polícia brasileira, que já
tem preso mais de dez pessoas. Onde foi raptado o menino do que estás a falar?
- No maior centro comercial, há alguns
dias.
- Sinto muito, mas infelizmente não posso
ajudar-te. Porém, se ficar a saber alguma coisa aviso-te, não te preocupes.
- Obrigado, Aristides. Espero que resolvas
o caso muito pronto.
- Isto eu também espero. Desculpa-me
agora, mas tenho de voltar ao trabalho. Com licença.
- Sim, claro, com licença.
Então, o Aristides não pode ajuda-lo.
Outra vez sem nada nas mãos. A imagem da pobre mãe vem outra vez na sua mente.
Sente-se muito débil.
O telefone soa outra vez.
- Estou.
- Olá, Andrés, tudo bem?
- Quem é?
- Não me conheces, homem? Onde anda a tua
mente? Sou eu, Roberto.
- Ah, sim, Roberto, olá, não te
reconhecei, desculpa. Tenho um caso difícil e estava a pensar nele.
- Telefono-te para te lembrar que esta
noite temos encontro no clube. É noite de futebol. Vamos vê-lo com cervejinhas
e petiscos. Não te esqueças.
- Não sei, Roberto, este caso me preocupa
muito...
- A vida de nós, policias, é cheia de
casos, Andrés. O que vais fazer? Tens de continuar a viver para puderes
continuar a resolver casos.
- Sim, já sei. Ma este caso é um caso
especial...
- Não há casos especiais no nosso trabalho.
Todos os casos têm a mesma raiz. As pessoas fazem coisas estúpidas e depois
chamam a Polícia para corrigir os seus erros.
- Trata-se de um rapto. Não é coisa de uma
pessoa ter errado.
- Claro que é. Uma mãe perdeu o filho
porque não estava bastante atenta. Eis o erro.
- Não sejas tão cínico.
- Não sou cínico, só digo a verdade. Tu,
simplesmente, és muito sentimental. Pensa-o melhor e vais ver que tenho razão.
Todos os casos são resultados de erros, propositados ou não, não importa. O
resultado é o mesmo. Eu, por exemplo, acabo de receber um telefonema de uma
senhora que disse que ela e o seu marido foram robados por dois homens, que
procuraram dar-lhes um menino órfão para adoptar, mas o menino disse que queria
a sua mãe, e depois não sabem o que aconteceu, porque adormeceram e quando
acordaram, não havia sinal nem dos homens, nem do menino, nem das poupanças do
casal... E pergunto-te: porque é que aconteceu tudo isto? É um caso especial? Claro
que não. Porque se o casal tivesse pensado um bocadinho no assunto, teria visto
que havia algo errado em tudo isto. Mas não pensou. E agora a Polícia tem de
encontrar os ladrões e o dinheiro perdido.
O Roberto parece estar zangado. Mas este
caso... podia ter alguma relação com o bando brasileiro?
- Porque não informas o Aristides Ramos
sobre o caso do casal? Tem um caso grande com um bando brasileiro que tem
ligações no nosso país.
- Não acho que seja algo grande. Foram
somente dois criminais que iam vender um menino a um casal. Esta história é tão
velha como o Adão e a Eva. Obviamente, um dos homens tem um filho que usa como
engodo para pescar vítimas. Ou, podiam também ter raptado o menino para o
vender...
Uma luz acende-se na mente do comissário
Santos.
- Podiam ter raptado o menino, disseste?
- Evidentemente...
- Quando vais interrogar o casal?
- Dentro de pouco vou ao lugar do crime,
porque estás a perguntar?
- Porque quero ir contigo. O teu caso
podia ter alguma relação com o meu caso.
- Pois, se tu achas... Está bem.
Espero-te, mas não demores. Temos de terminar pronto, porque depois temos de
preparar-nos para o jogo de futebol.
- Vou agora mesmo, diz o comissário e
desliga.
17. A VELHA ADORMECIDA
O cumprimento da camélia deixou a dona
Amália muito surpreendida. Nunca esperava ouvir uma flor falar. Mas, era
verdade? A camélia tinha falado mesmo? Tinha de esclarecê-lo.
- Senhora camélia, disse olhando para a
planta com muita atenção, desculpe, mas, pode repetir o que disse? Sou velha e
não oiço muito bem.
Houve silêncio.
- Sou tão velha que imagino coisas, disse
a dona Amália e virou para a sua casa. Mas, justamente quando virou, ouviu repentinamente
um sussurro por entre os ramos e ouviu a mesma voz:
- Senhora, não se assuste.
Por pouco a dona Amália não desmaiou.
Virou outra vez para a camélia e viu que os seus ramos estavam a mexer.
- Meu Deus, pensou, será que a camélia
pode caminhar também?
Então, por entre os ramos da camélia,
apareceu um menino.
- Sou eu, senhora, por favor não se
assuste, disse o Joãozinho.
- Ó, menino, assustaste-me muito. O que
estás a fazer aqui? Onde está a tua mãe? Não me parece ter-te visto outra vez
no nosso bairro.
- Não sou de aqui, disse o Joãozinho. Dois
homens trouxeram-me.
- Que homens? perguntou ela.
- Não os conheço. Têm nomes estranhos. Um
se chama Maestro e o outro se chama Passarinho.
- Meu pequeno, não te estás a imaginar
coisas? perguntou a dona Amália e bocejou. Estes nomes não parecem nomes
verdadeiros. Onde está a tua mãe? Anda, vamos sentar aqui neste banquinho e
contas-me tudo.
- Mas estou a dizer a verdade! O Maestro
foi aquele que me levou. Estava eu com a minha mãe no centro comercial, e perdi
a minha mãe, e apareceu ele, e disse-me que ia levar-me à minha mãe, mas levou-me
num lugar que não conheço...
- Espera, filho, porque...
aaaaaaaaaaaa........ dizes muitas coisas, e não posso seguir-te. Diz-me outra
vez: onde foi que conheceste ........... aaaaaaaaa...... aquele homem?
- No centro comercial. E disse que ia levar-me
à minha mãe, mas não me levou a ela, pôs-me num carro que conduzia o
Passarinho, e levaram-me num lugar...
- Que conduzia o Passarinho... sim....
isto.... aaaaaaaaaaaaa..... parece muito estranho. Eu nunca ouvi de um
passarinho conduzir um carro. Tens certeza, filho, que me estás a dizer a
verdade? Aaaaaaaaaaa......... que bocejo, meu Deus!
- Sim, senhora, e procuraram dar-me a um
casal desconhecido, mas eu escapei...
- Os bons meninos não escapam ....
aaaaaaaaaaa.... E que aconteceu depois? Deixa-me fechar os olhos um bocadinho.
Sinto-me tão ..... cansada...
- Senhora, não durma, por favor!
- Não estou a dormir.... aaaaaaa......
oiço-te perfeitamente. E como são estes homens?
- O Passarinho é gordo, calvo e com
bigodes e o Maestro é alto, magro, usa óculos e tem o cabelo cumprido...
- A rabo de cavalo?....
- Sim, como a senhora sabe?
- ....aaaaaaaaa.... não o sei, mas.... há
um homem de rabo de cavalo.... aaaaaaaaaaaaa... na entrada do ...aaaaaaaaaaa...
jardim............
- Pensaste que podias escapar? perguntou o
Maestro e agarrou-o pelo braço. Vem cá!
- Deixe-me, disse o Joãozinho mas antes de
ter tempo para dizer mais, a mão do Maestro tinha-lhe tapado a boca.
- Ó Passarinho, abre a porta. Vou atar e
amordaçar o menino, para evitar outros acidentes.
O Maestro pôs o menino dentro do carro e
entrou ele também. A dona Amália não deu conta, porque já estava a dormir,
sentada no banco. Mas, desde a casa de em frente, uma criança pequena estava a
tocar o vidro de uma janela grande como se fosse um tambor, saudando assim um
amigo novo que acabava de desaparecer num carro azul escuro.
18. PRISIONEIRO OUTRA VEZ
O Maestro estava muito zangado. Dava
voltas e mexia as suas mãos continuamente. Desde o quarto contíguo, o Joãozinho
não podia vê-lo mas, com a orelha pegada na porta, procurava ouvir.
- Menos mal que o apanhei, dizia o
Maestro. Podes imaginar o que aconteceria se o menino conseguisse escapar?
- Mas nós conseguimos levar o dinheiro do
casal, não é?
- Sim, mas imagina se o menino tivesse ido
à Polícia, estúpido! Podiam ter-nos encontrado antes de escapar com o dinheiro,
percebeste?
- Porque te zangas, homem? Encontraste o
menino, não o encontraste?
- Sim, está bem, tens razão, disse o
Maestro, como se tivesse acordado de repente. Agora temos de ver o que vamos
fazer com o rapaz.
- Sobre isto não é difícil pensar, disse o
Passarinho. Vamos deixá-lo num lugar apartado e vamos desaparecer.
O Joãozinho sentiu-se aliviado. Iam
deixá-lo livre. Era questão de tempo. Tinha simplesmente de ter paciência.
- És mesmo estúpido, disse o Maestro.
Porque não pensas como podíamos ganhar mais dinheiro?
- Quem quer muito, perde tudo, dizia a
minha mãe.
- Pois a minha mãe não dizia coisas
estúpidas.
- Muito bem, então. Se tu és tão esperto,
diz-me como podemos ganhar mais dinheiro. Vais vendê-lo outra vez?
O sangue do Joãozinho gelou.
- Isto não é sábio, disse o Maestro. Temos
de fazer algo um bocadinho diferente. Vamos vendê-lo à sua própria mãe.
- Vendê-lo à própria mãe? Que queres dizer
com isto?
- Vamos telefonar-lhe e pedir-lhe resgate.
- Achas que tem dinheiro para dar?
- Não custa nada perguntar.
- Sim, mas não pensas que assim vamos
arriscar ser localizados pela Polícia?
- Vamos pedir-lhe para não implicar a
Polícia. Ela não vai arriscar a vida do seu filho, não é?
- Espero que tenhas razão.
- Claro que tenho. Ó tu, ranhoso, qual é o
número do telefone da tua mãe? E qual é o seu nome?
19. À PROCURA DE TESTEMUNHAS
O comissário Santos está numa rua central.
Desde a manhã percorreu-a toda, sem encontrar nenhum sinal do Joãozinho. Está
cansado mas não desiste. Uma voz dentro dele diz-lhe que as respostas que
procura estão lá perto.
Anda na rua com grandes passos e o seu
olhar vai da uma parte da rua à outra, procurando imaginar onde podia ter ido o
menino, quando escapou dos seus raptores. No parque não o viu ninguém. Na rua,
também. Mas, o que aconteceu, sumiu?
O casal que foi interrogado ontem não deu
muitas pistas. Só pôde dizer onde estava o escritório do advogado-embusteiro. Os
policias encontraram bastantes impressões digitais para procurarem os raptores,
mas, até isso acontecer ele não pode perder tempo. Deve agir agora já.
Se não foi ao parque, onde podia ter ido?
pergunta-se. Provavelmente não ficou na rua central. Provavelmente tratou de
escapar através de uma rua lateral. Um menino muito esperto. Oxalá tenha
conseguido escapar.
Vira à direita. Uma rua tranquila. Há
menos tráfico e menos gente nesta rua, mas mesmo por isto parece mais
tranquilizadora, especialmente a um menino de seis anos. Podia ter solicitado
refúgio numa destas casas pobres?
Uma depois da outra, as casas gradualmente
o decepcionam. Também nesta rua, ninguém o viu. Podia ter ido a uma outra rua
lateral, obviamente. Está bem, pensa. Uma ou duas casas mais, e depois vou para
uma outra rua.
Entra num jardim bonito. Uma senhora está
a falar com uma planta. Que tipo de testemunha seria uma mulher que fala com as
plantas? Mesmo assim, tem de provar.
- Bom dia, senhora.
- Ó meu Deus, que susto! diz ela. Estava
distraída. O que é que o senhor quer?
- Desculpe, senhora, não queria
assustá-la. Sou comissário Santos, e queria fazer-lhe algumas perguntas sobre
um menino.
- Estou à sua disposição, comissário.
- A senhora viu este menino? Temos
informação que ontem, ao meio-dia, estava no seu bairro.
- Que coincidência, senhor comissário!
Ontem, ao meio-dia, adormeci um bocadinho e sonhei com este menino.
- Sonhou com o menino? Como?
- Deve ter acontecido quando estava a
falar com a camélia...
O comissário pensa que a senhora não anda
bem na cabeça, mas mexe a sua cabeça em sinal de aprovação.
- Continue, diz.
- Estava a falar com a camélia, quando ela
me respondeu...
- Respondeu-lhe a camélia?
- Sim, senhor, mas, como já lhe disse,
estava a sonhar. A camélia respondeu-me, mas resultou que não era a camélia que
me respondeu, era este menino da fotografia.
Podia não ter sonhado com o menino? pensa
o comissário. Podia tê-lo visto de verdade?
- Disse-lhe alguma coisa?
- Quem?
- Pois, o menino, claro.
- Não me lembro claramente, mas acho que
me disse um conto.
- Um conto?
- Sim. Era sobre um maestro e um
passarinho que conduzia um carro, acho. Não me lembro de nada mais.
O comissário pensa que a senhora está
louca. Tanto tempo perdido. Tem de ir-se embora.
- Bom, senhora, muito obrigado pela sua
ajuda.
- Ah, sim, e depois apareceu um homem de
rabo de cavalo...
- Está bem, senhora, obrigado. Bom dia.
20. UM TESTEMUNHA FUNDAMENTAL
O pequeno Carlos acabou a sua comida e
agora está no salão, a brincar com o seu boneco favorito, um ursinho fofo, de
peliça branca, que se chama Nevinho. O ursinho é o seu melhor amigo. A ele
confia tudo. É uma pena que o ursinho não possa falar, mas mesmo assim, o
Carlos percebe muito bem o que o ursinho diria se pudesse falar.
Hoje o dia parece muito bonito. Que te
parece um posto ao lado da janela, Nevinho? Claro que gostas da ideia. Vamos,
então.
Com alguma dificuldade, já que há somente três
dias que conseguiu andar, o pequeno Carlos levanta-se e vai para a janela, arrastando
o Nevinho com ele. Aqui fica-se bom, não é? Que dia tão bonito!
Ouve-se a campainha. Alguém está na porta.
Quem será?
- Bom dia, senhora, diz uma voz masculina.
Eu sou comissário Santos.
- Bom dia, comissário. Aconteceu alguma
coisa? pergunta a mãe do Carlos.
- Não, não se preocupe, só queria
fazer-lhe algumas perguntas.
O pequeno Carlos vai gatinhando para a sua
mãe.
- Passe, diz a mãe ao comissário.
Sentam-se no salão. O comissário parece
enorme. Que barrigão! Parece um balão, não é assim, Nevinho?
- A senhora viu por acaso esta criança? É
maior do que nesta fotografia e tem mudado os dentes da frente.
- É-dé-dé, diz o Carlos. Deixem-me ver.
- Não, não o tenho visto, diz a mãe.
- A senhora tem certeza? Deve estar aqui
perto. O menino foi raptado há alguns dias e ontem foi visto neste bairro.
- Eu-eu. Da-da-da. Eu sei, diz o Carlos.
Vi-o. Po.
- O que há, tesouro? pergunta a mãe. Fica
tranquilo um bocadinho e a mãezinha vai levar-te ao parque, está bem?
- Ó-ó-ó.
- Pelo menos notou algum homem desconhecido
neste bairro?
- Á-á-ó. Do-do. Be-be-be. O homem era
alto, moreno e muito magro e tinha um rabo de cavalo, porque tinha o cabelo
cumprido. Usava óculos redondos e tinha um anel no dedo pequeno. Eu vi. I-i-i.
Da-da-da. Bo.
- Sim, querido, diz a mãe, vamos ao
parque. Sim, mas agora deixa a mãezinha falar com o senhor comissário, está
bem?
- Ba-ba-ba. Foi lá fora onde o vi. Na rua.
Ua.
O Carlos levanta a mãozinha para mostrar
onde estava o homem.
- Sim, querido, vamos lá fora, diz a mãe.
Mas espera um bocadinho.
- I-i. Du-du-du. Depois veio um outro
homem num velho carro azul escuro, e levou o homem do rabo de cavalo e o
menino. Justamente cá fora. Cá-cá.
- Emergência, querido? Queres ir à casa de
banho, meu amor? pergunta a mãe. Não te preocupes, vamos agora mesmo.
- Se a senhora ver o menino, por favor
avise a Polícia, diz o comissário e levanta-se do sofá. Eis o meu cartão de
visita. Pode telefonar directamente a mim.
- Desapareceram de seguida. Ba-ba-bu.
- Pois claro.
- Bom dia, senhora.
- Ó-ó. Da-da-da.
- Bom dia a ti também, diz o comissário ao
pequeno Carlos.
A porta fecha. O comissário vai-se embora
e a mãe vai para a casa de banho, levando o Carlos pela mãozinha.
- Vamos à casa de banho, então, diz, e
depois vamos vestir-nos para ir ao parque. O meu Carlinho está muito falador
hoje, não é? O que aconteceu? Gostaste do senhor comissário?
- Ba, diz o Carlos. Deixa-estar.
O menino não está nada satisfeito. Hoje
falou tanto como não tinha falado em toda a sua vida, mas ninguém reparou.
Quando for grande, pensa, tudo será diferente. Porque, obviamente, ninguém
repara em nós, os pequenos, não é assim, Nevinho? Mas quando for grande, todos
vão ver. Da-da-du.
21. TELEFONEMA DE NATAL
Amanhã é dia do Natal. Dia festivo para
todos, que o festejam com a família. Isto é o que pensa a Florida, e está
completamente desesperada.
Tantos dias passaram e ainda não soube
nada do seu filho. A única coisa que o comissário Santos lhe disse foi que,
como parece, o Joãozinho não foi raptado pelo bando brasileiro. Menos mal, mas
mesmo assim, a verdade é que ninguém sabe em que tipo de perigo está
exactamente o seu filhinho.
Na cama do Joãozinho está um pacote. É o
presente que ela comprou para ele. É um carro pequeno vermelho. Custou-lhe um
bocadinho caro, mas nada pode ser mais caro de um filho, não é?
A Florida pensa que seria boa ideia ir à
igreja e rezar ao menino Jesús para proteger o seu menino e para o devolver nos
seus braços muito pronto. Pensa também que seria boa ideia fazer um voto. Pode
prometer que não vai cortar o seu cabelo até o Joãozinho voltar. Dantes, as
mulheres faziam votos deste tipo, quando os seus maridos partiam longe, ou
quando iam à guerra, ou quando estavam muito doentes.
Abre o roupeiro, onde está o seu único
vestido. Soa o telefone. O coração da Florida dá um salto. Quem será?
Anda correndo ao telefone e com mão
tremente levanta o auscultador.
- Estou, diz com uma voz que apenas se
ouve.
- A senhora Pestana? pergunta uma
desconhecida voz masculina.
A Florida senta-se na cadeira que está ao
lado do telefone.
- Sim, sou eu, diz e sente o seu coração
galopando dentro do seu peito.
- Temos o seu filho, senhora Pestana, e se
a senhora quizer vê-lo outra vez, tem de pagar...
- Não percebo, balbucia. Quem é?
- Oiça, continua a voz, porque não vou
repetir. Se a senhora quer ver o seu filho outra vez, tem de pagar dinheiro.
De repente, a Florida dá conta do que se
trata.
- O meu filho, diz, como está? Onde está?
Grandes lágrimas começam a correr nas suas
faces.
- Pelo momento, o seu filho está bem, não
se preocupe.
- Quero falar com ele. Quero falar com o
meu filho!
- Mãe, ouve-se a voz do Joãozinho.
- Meu amor! Como estás? Onde estás? Fizeram-te
algo mau?
- Como a senhora vê, não estou a mentir,
ouve-se outra vez a voz do homem desconhecido.
- Quero falar com o meu filho, diz outra
vez a Florida. Quero ouvir ele mesmo dizer que está bem.
- Mãe, ouve-se o Joãozinho outra vez.
- Filhinho, como estás, meu amor? Estás
bem?
- Leva-me de aqui, mãezinha, leva-me de
aqui!
- Sim, filhinho, sim, tem um pouco de
paciência. Pronto estaremos juntos, não fiques triste...
- Mãezinha, procurei escapar, mas não
sabia...
- Então, ouve-se a voz do homem, a senhora
viu que o seu filho está vivo. Agora, se quizer ver o seu filho, tem de seguir
as nossas instruções.
- Sim, vou fazer tudo o que me disserem,
por favor não lhe façam mal!
- Tudo dependerá de si.
- O que devo fazer?
- Primeiro, não pode avisar a Polícia. Se
avisar a Polícia, sinto muito mas teremos de matar o menino.
- Matar? Não, não, por favor, não lhe
façam mal! É apenas um menino. Não vou chamar a Polícia, prometo-o, não se
preocupe.
- Segundo, a senhora deve deixar o
dinheiro num lugar que nós vamos decidir e deve andar ao lugar sozinha, sem
companhia de ninguém.
- Sim, claro, vou fazer como me diz. E
onde tenho de ir?
- Já é cedo para a senhora saber. Vamos
avisá-la um pouco antes do nosso encontro. Depois, quando tivermos o dinheiro,
a senhora vai ter o seu filho.
- E como posso saber eu que vão fazer o
que me diz?
- Não pode saber, diz a voz. Mas se a
senhora não fizer o que dizemos, pode ter certeza que não vai voltar a ver o
seu filho...
A Florida sente tanto medo que, até agora,
nunca sentiu na sua vida.
- Está bem, diz. E quanto é que os
senhores querem para deixar o meu filho?
Ouviu bem?
- Mas é muito, diz e pensa que muito
pronto vai desmaiar. Eu não tenho tanto dinheiro.
- Sim, todos dizem que não têm, mas um
pouco depois todos encontram. A senhora tem certeza que quer ver o seu filho?
Porque podemos deixar a situação como está: nós sem dinheiro e a senhora sem
filho...
- Por favor...
- Não somos más pessoas, senhora. Digamos
que esta não é a sua resposta final. Vou telefonar outra vez esta noite para
saber qual é a sua decisão. E, lembre-se: nada de Polícia. Com licença.
A Florida fica com o auscultador na mão. O
que tem de fazer agora?
22. CLIENTES NOVOS
O Joãozinho estava outra vez no quarto sem
janelas. Não sentia nem bem nem mal. Claro, estava contente porque, pelo menos,
tinha ouvido a voz da sua querida mãe, mas, por outro lado, estava preocupado
pelo resgate. Onde ia encontrar dinheiro a sua mãe, para os dois homens o
deixarem livre? Ele sabia muito bem que a Florida não tinha dinheiro. Isto
significava que não o deixariam nunca? O nosso amigo sentiu-se como se tivesse
caído num poço profundo.
No quarto contíguo, o Maestro estava com a
cabeça apoiada na sua mão. Isto significava que o Maestro estava a pensar, e
quando ele pensava, nunca pensava em coisas boas.
- Ó, Maestro, disse o Passarinho, já é
hora de comer.
- Tu não podes pensar em outra coisa?
- Desculpa lá, mas quando tenho fome não
posso pensar em nada mais. É a lei da natureza.
- É a lei da natureza que também te faz
dizer bobagens?
- Não digo bobagens, não senhor. É hora de
comer e isto é um facto. Ao contrário, tu pareces muito preocupado sem razão
alguma.
- Achas?
- Pois acho. Não há nada para me
preocupar, não é? Já temos o dinheiro do casal, e muito pronto vamos ter o
dinheiro da mãe também. Então, muito pronto teremos montes de dinheiro e cada
um vai onde quizer.
- Quantos anos tens?
- Porquê?
- Porque pensas como se fosses um menino
de dez anos!
- Mas, porquê?
- Pensaste o que vai acontecer se a mãe
realmente não tem dinheiro, como me disse? Vamos correr o risco de ser
apanhados pela Polícia, sem ganhar absolutamente nada.
- Mas tu disseste-lhe para não avisar a
Polícia...
- E como tens certeza que ela vai fazer o
que eu lhe disse?
- Pois, quer voltar a ver o seu filho,
penso...
- Sim, claro, mas nunca se sabe. Nós temos
de estar preparados para tudo. Aliás, se não tem dinheiro, não podemos ganhar
nada. Então, temos de pensar num plano alternativo.
- Eu, como dizes, não sirvo para nada...
- E por isto eu já pensei no plano
alternativo que precisamos. Vamos vender o menino a um outro cliente.
- Já encontraste?
- Ainda não, mas já fiz alguns
contactos...
- Quem é?
- Ouviste alguma vez falar do Talho?
- Do cirurgião?
- Do cirurgião, sim.
- Pois não somente ouvi falar dele mas
conheci-o na prisão. Ele estava lá por não ter pago impostos durante três anos,
se bem me lembro. Eu estava lá por ter robado um carro. Ele ficou lá um ano e
meio, eu fiquei três anos. Obviamente, o advogado dele era melhor do que o meu.
- Obviamente. Mas não penses que não teve
consequências. Conseguiu sair da prisão cedo, sim, mas foi despedido pelo
hospital onde trabalhava, e agora não o aceitam em nenhum hospital do país.
- Não me digas que ele é o cliente.
- Claro que não. Encontrei-o por acaso ontem
e falámos um bocadinho. Ele vai trazer-nos em contacto com o cliente.
- Quem é o cliente, então?
- É estrangeiro, isto é a única coisa que
sei dele.
- E que vai fazer com o menino?
- Queres saber mesmo?
O Passarinho não disse nada, mas fez sinal
com a cabeça para o Maestro continuar. Ele olhou para a porta do quarto onde
estava o Joãozinho, depois voltou para o Passarinho.
- Bom, disse. Vou dizer-te, mas tu não
sabes nada, ouviste? O Talho não sabe que não trabalho sozinho.
- Não te preocupes. Vou manter a minha
boca calada.
- No mundo há muitas pessoas que morrem,
mas que podiam ser salvas se pudessem receber uma transplantação. Mas, para
haver uma transplantação, há de haver órgãos disponíveis. E, sabes onde se
encontram os órgãos disponíveis? Em pessoas que morrem nos hospitais. Mas as
pessoas que morrem nos hospitais não chegam para todas as pessoas que precisam
transplantações. Aliás, há pessoas muito ricas que pagariam muito dinheiro para
encontrar um órgão disponível e que têm o dinheiro para pagar...
- O que estás a dizer? disse o Passarinho.
Estás a falar do mercado negro de órgãos humanos? Vais vender o menino para lhe
arrancarem os órgãos? Não posso acreditar nos meus próprios ouvidos!
- Tu querias saber...
- Não, disse o Passarinho, desculpa lá, isto
não o vou permitir! Sou muitas coisas: ladrão, impostor, raptor, sim, mas
assassino, não!
- Não sejas dramático! Nós somente vamos
vendê-lo...
- Às pessoas que vão matá-lo! Não vou
deixar-te vender o menino àquelas pessoas. Se precisar, eu mesmo vou a Polícia!
- Escuta aqui, imbecil, se não quizeres
participar, a porta está aberta para ti. Posso trabalhar sozinho, não te
preocupes. Mas...
Houve silêncio no quarto.
- Mas, continuou o Maestro, se avisares a
Polícia, fingindo que és um cidadão honesto, podes ter a certeza que o teu
pequeno Tomás...
O Passarinho sentiu como se uma pedra
enorme lhe apertasse o coração.
- Digamos que o teu pequeno Tomás vai
ficar pequeno para sempre, disse o Maestro. Estamos?
23. O DILEMA DE UMA MÃE
A Florida sente-se mais sozinha do que
jamais se sentiu. Agora seria óptima ideia se ela também tivesse uma mãe para
perguntar: ó, mãe, o que é que devo fazer para salvar o meu filho? Mas, como já
dissemos no início da nossa história, a Florida pertence àquelas pessoas pouco
sortudas, que desde muito cedo têm de caminhar na vida com os seus próprios
pés, sem apoio de ninguém.
As paredes calam-se. A janela não sente a
sua dor. Os livros que estão na mesa não sabem dizer-lhe nada.
Quanto difícil é decidir! A coisa correcta
seria sem dúvida chamar a Polícia. Mas, por outro lado, aquele homem disse que
se ela chamasse a Polícia, iam matar o seu filho! Meu Deus, não deixes que me
matem o meu Joãozinho, pensa.
De repente se lembra das exigências dos
raptores. Onde vai encontrar o dinheiro que lhe pediram? Nem sequer ter
poupanças. Tudo o que ganha do seu trabalho no café não basta para ter uma vida
decente, muito menos para poupar. Aliás, as pessoas que conhece são também
gente pobre. Mas, mesmo se não fossem pobres, quem lhe emprestaria dinheiro?
Ninguém, esta é a resposta certa. Ninguém
lhe prestaria dinheiro. A Florida inocente já cresceu, não acredita nas fábulas
e sabe perfeitamente de onde vêm os bebés. Sabe também que a sociedade é muito
cruel, especialmente para com os pobres. Não há bondade no mundo, não senhor, e
também não há justiça, porque se houvesse justiça, ela, que não tem nada mais
do que o seu filho, não estaria nesta situação tão difícil e tão triste.
O que vai acontecer, então? Porque, se não
encontrar o dinheiro que os raptores querem... é muito provável... é muito
provável que... (não quer nem sequer pensar nisto) ... que ... (que o matem,
porquê não o diz?)....
Não tem tempo. Os segundos voam, os
minutos correm, as horas passam rapidamente. Muito pronto serão as seis... e
depois as sete... e depois...
Soa o telefone. Mecanicamente, a Florida
levanta o auscultador.
- Boa tarde, senhora Pestana, ouve-se uma
voz que lhe parece conhecida. Como está?
- Bem, responde ela, simplesmente por
costume. Quem é?
- Desculpe, claro, não me presentei. Sou o
comissário Santos.
- Alguma novedade, comissário? pergunta a
Florida, pensando que pudesse ter acontecido algum milagre.
- Não, sinto muito, não tenho nenhuma
novedade. Sabemos, claro, os nomes das pessoas que raptaram o seu filho...
- Sabem? Quem são?
- Sinto muito, mas são pessoas com um
passado criminal. Um deles chama-se Manuel Matias e no passado foi condenado
por contrabando, e o outro chama-se Elias Carvalho e é um ladrão de carros, que
foi preso pelo menos duas vezes.
- Isto é boa notícia, não é? pergunta a
Florida. Porque, se os senhores conhecem quem são, é mais fácil encontrá-los.
- Pois, o problema é que não podemos
encontrá-los, pelo menos ainda. Não sabemos onde estão. Mas não se preocupe, espero
muito pronto estar na posição agradável de poder devolver o seu filho à si.
A Florida está indecisa. Se avisar a
Polícia, matam o Joãozinho, pensa. Se não encontrar o dinheiro pedido, também o
matam. Falo ou não falo?
- Senhora, está bem? ouve-se a voz do
comissário Santos. Aconteceu-lhe alguma coisa?
- Não, não aconteceu nada, estou bem,
obrigada.
- Não queria incomodar a senhora, mas
telefonei para lhe dar os meus desejos para o Natal. Oxalá o ano novo, que está
a aproximar, a encontre com o seu filho nos braços. Eu, por minha parte, vou
fazer tudo o que puder.
- Muito obrigada. Que Deus oiça.
- A minha esposa também lhe manda os seus
melhores desejos. Reza por si e pelo seu filho todos os dias.
- Diga-lhe que lhe agradeço a bondade.
- Estive a pensar, diz o comissário, que é
muito provável, já que o seu filho não foi raptado pelo bando brasileiro, que a
senhora receba algum telefonema dos raptores.
Os cabelos da Florida movem-se no seu crânio.
- Se, continua o comissário, se os
raptores vierem em contacto consigo, por favor avise-me.
Se avisar a Polícia, pensa a Florida,
matam-no.
24. O SENHOR DESCONHECIDO
O Cristovão Colombo, desculpem, o
Cristovão Calumba queria dizer, estava a discutir com os seus amigos. Pouco
antes, estavam todos a jogar a futebol, aproveitando do dia soalheiro. E, de
repente, o guarda-redes da sua equipa decidiu ir-se embora. Naquela altura, a equipa
do Cristovão estava a vencer com dois golos que ele próprio tinha feito.
O Cristovão zangou-se, porque ele era o
chefe e, portanto, ele devia decidir.
- Na próxima vez, disse ao Zé, o
guarda-redes, procura outra equipa. Na minha equipa não cabes.
- Não digas isto, disse o Zé, que sentiu
vontade de chorar, mas procurou parecer forte. Eu sempre jogo na tua equipa...
- Já falei, disse o Cristovão levantando a
mão, para os outros perceberem que ele era o chefe, meu Deus, que falta de
respeito!
A discussão continuou e, finalmente
decidiram que a partida tinha terminado e que todos voltavam para casa. A fim
de contas, era Natal e as suas mães espera-los-iam para comerem com a família. O
Cristovão ficou de mal humor. Era chefe, ou não era? Não contava a sua opinião?
«Vou despedi-los todos da minha equipa», pensou. Mas antes disso, tinha de
procurar novos jogadores. Que vida tão difícil, a vida de um chefe!
O
que o Cristovão nem imaginava era que havia coisas mais difíceis na vida. E uma
coisa muito difícil mesmo era a coisa que tinha acontecido ao Joãozinho, que
estava ainda encerrado no quarto sem janelas, sem saber o que ia acontecer-lhe.
Desde o dia anterior estava muito
preocupado com a sua mãe. Como tinha ouvido através da porta, a Florida tinha
comunicado com o Maestro e tinha-lhe pedido para lhe dar um prazo de dois dias,
para ela conseguir encontrar o dinheiro. O que teria na sua mente? Ia mesmo
encontrar o dinheiro? Onde?
Acontecesse o que acontecesse, porém, ele
não estava muito optimista. A discussão do dia anterior entre os dois homens,
embora ele não tivesse conseguido perceber (era algo sobre órgãos, mas não
sabia o quê), não o deixava relaxar. Algo mau estava à sua espera. Se não,
porque naquela mesma manhã os dois homens não tinham trocado nem uma palavra
entre eles?
O
Joãozinho tinha razão. Desde o dia anterior, o Passarinho não falava ao
Maestro, e procurava ficar sozinho. O Maestro, por outra parte, não se
preocupava com isto, porque estava preocupado com o seu plano alternativo.
Desde a manhã, estava no telefone, a falar em voz baixa e a fumar um cigarro
depois do outro. O Joãozinho não podia vê-lo, mas podia cheirar o fumo que
entrava por baixo da porta.
Era quase a hora da comida, quando a porta
do quarto abriu e o Passarinho entrou.
- Fica tranquilo, disse ao Joãozinho. Vou
atar-te e vou fechar-te a boca também. O Maestro não quer que fales com o
senhor X.
- Quem é o senhor X?
- Não sei, este é o seu nome, disse o
Passarinho e atou as mãos do Joãozinho com um fio forte.
- Este é...
Mais não pôde dizer mais, porque o
Passarinho já lhe tinha tapado a boca com um trapo.
- Agora vem, disse o Passarinho e
conduziu-o no quarto contíguo, onde, além do Maestro, havia também um homem
desconhecido.
O Passarinho saíu do quarto e o Joãozinho
ficou a observar o senhor X. Era alto, magro, e loiro. Os seus olhos não se
viam, porque usava óculos de sol. Usava também um fato escuro, que parecia de
boa qualidade e um cachecol branco. Os seus sapatos brilhavam.
O Joãozinho não se impressionou nada, claro,
porque já tinha aprendido que a boa roupa não é sinal de uma pessoa boa, e que,
muitas vezes, aquilo que parece muito bom é na realidade a pior coisa possível.
O Maestro, por outra parte, ficou
impressionado pelo como se pareciam os dois: aquele homem certamente podia
passar pelo pai do miudo. O Passarinho era uma escolha obrigatória. Mas, com o
senhor X podia vender o miudo mil vezes e ninguém poderia imaginar que não se
tratava de pai e filho.
- Porque é que está amordaçado? perguntou
o senhor X.
- É uma estranha história, disse o
Maestro. Este miudo quando fala, faz as pessoas adormecerem. Já me escapou uma
vez assim.
- É verdade? disse o senhor X. Então se trata
de um menino esperto e forte.
- Quanto a isto...
- Acho que o menino dá para o meu cliente.
- Claro que vai dar, disse o Maestro. É um
menino saudável. E quando vamos ter o dinheiro?
- Hoje mesmo eu falo com o cliente e
depois arranjamos tudo. Acho que amanhã estaremos prontos. Tenho também de
falar com o Talho. Ele vai fazer a operação. Em todo caso, vou telefonar.
- Como o senhor quizer...
- Até amanhã, então.
- Até amanhã. Obrigado.
O senhor X saíu da casa e foi para o seu
carro. Mais uma missão com sucesso. O menino era ideal. Parecia saudável. Todos
os seus órgãos estariam em óptima condição. Oxalá, porém, não tivesse aqueles
olhos tão grandes. O senhor X ficou pensativo. Era como se o olhar do menino
fosse cravado na sua mente.
Abriu a porta do carro e sentou-se dentro.
Se não fosse aquele menino, seria um outro, pensou. Isto era a pura verdade.
Era também verdade que com a comissão que ia cobrar, conseguiria comprar uma
casa de campo.
No assento do lado havia a fotografia da
casa que ia comprar. «Que bonita!» pensou. «E dentro de pouco, será mia.» Era
verdade que o negócio dos meninos raptados não era agradável. A fim de contas,
eram crianças inocentes. Mas, era verdade também que aquele negócio pagava
muito bem mesmo.
O senhor X pôs o carro em movimento e
desapareceu a grande velocidade.
25. OPERAÇÃO NOCTURNA
A Florida olha para o seu relógio. São as
sete. Ainda? pensa. Será que não funciona? Desde que entrou no carro do
comissário Santos, parece-lhe que passou uma eternidade. Mas os ponteiros
parecem parados, o tempo decidiu a andar mais devagar, justamente quando
deveria correr, voar como um furacão.
- A senhora está bem? pergunta-lhe o
comissário.
- Sim, estou bem. Que horas são?
- São as sete. Falta meia hora.
Então, o relógio funciona. Meia hora.
Trinta minutos. Mil oitocentos segundos. Uma eternidade. E os ponteiros mostram
as sete e um.
Como decidiu falar ao comissário, não sabe
explicar, como não sabe se fez bem ou mal. Os raptores disseram para ela não
implicar a Polícia. O seu menino está em perigo.
- Não se preocupe, diz o comissário como
se estivesse a ler o seu pensamento. Os nossos agentes já estão no lugar onde
os raptores disseram que iam deixar o seu filho. Quando o virem, avisam-nos de
seguida.
O comissário explicou-lhe o plano cem
vezes. Quando os raptores apanharem o saco com o dinheiro, eles vão segui-los
para depois os prender. Entretanto, os policías que estão no lugar onde os
raptores disseram que deixariam o Joãozinho, vão apanhá-lo e conduzi-lo ao
posto de Polícia, onde vai esperar para a sua mãe. Tudo irá sobre rodas, como
disse o comissário. Mas ela duvida.
Sete e cinco.
Como estará o seu menino? Mais magro,
certamente. Como o terão tratado aquelas pessoas? No telefone não se ouviu bem.
Parecia muito assustado, pobrezinho! Vinte e cinco minutos mais, que martírio!
- Lopes, tudo bem? pergunta o comissário
no rádio.
«zzz......cr..cr...aqui
Lopes....cr...tu....bem...cr....cr...zzzzz....» ouve-se no rádio. «....inda não
.....pareceu....guém. Tudo.....quilo...cr....»
- Repita, por favor, diz o comissário.
«...cr...não apareceu......guém...»
- Entendido. Muito bem, continue.
À estas horas já é noite e não se vê bem. Aliás,
a noite é muito escura. A lua parece ter escondido para não ver. Por outro
lado, a rua não tem muito tráfico, nem passam muitas pessoas. Não será muito
difícil localizar o raptor, ou será?
- A senhora quer um café? pergunta o
comissário. Ainda temos tempo.
- Não, obrigada. Estou bem.
Está bem? Tem dor de cabeça. Os
pensamentos dentro do seu cérebro são como um enxame de moscas, ou melhor, como
um enxame de vespas, que a picam continuamente.
Sete e dez.
Se pudesse fechar os olhos e abri-los
outra vez às sete e meia!
Quem disse que quando passamos bem o tempo
voa, mas quando enfrentamos uma situação desagradável, tudo parece durar mais?
Pois, aquela pessoa tinha razão.
Então, deve fingir que passa bem. Deve
pensar numa coisa agradável. Imagina que a meia hora já passou, tudo correu
bem, e ela está no posto da Polícia onde está o Joãozinho. «Aqui está»,
dizem-lhe. «Abra a porta».
Abre a porta. O Joãozinho está lá, sim,
não lhe mentiram. Está lá, com os seus cabelos de trigo e os seus olhos azuis.
Quando a vê, ele corre aos seus braços. Que felicidade! Além dos seus braços,
encheiou-se o seu coração também. Não quer deixá-lo. «Mãe!» diz o menino.
«Estamos juntos outra vez!» «Sim, meu querido», diz ela. «E vamos ficar juntos
para sempre!»
Entra o comissário. «Pois», diz, «a senhora
viu que não tinha de preocupar-se? Tudo foi bem, exactamente como o tínhamos
planeado». «Sim, senhor, muito obrigada», responde ela. «Não sei como
agradecer-lhe». «Não é preciso fazer nada. Só fizemos o nosso trabalho. Agora
pode voltar para sua casa. Passe bem e tenha um ano novo muito feliz».
«Igualmente. Que Deus lhe bendiga.»
Vão para casa. Lá, o Joãozinho vê o pacote
que está na sua cama. «Ó, mãezinha, o que é isto?» «Bom, filhinho, isto é o teu
presente para o ano novo». «Mas ainda é cedo. O pai Natal não chegou. Faltam
tantos dias.» «Pois, este ano, só para ti, fez uma excepção. Trouxe-te o teu presente
mais cedo». «Que bom!» diz o Joãozinho e começa a abrir o pacote. «O que é? O que
é?» O Joãozinho despedaça o papel e aparece o carro vermelho. «Um carro
vermelho!» diz o menino e fica com a boca aberta. «E é novo, não é?» «Sim, meu
querido» diz a Florida. «É novo e é para ti». «Obrigado, mãezinha!» diz o
Joãozinho e abraça-a com ambas as mãos.
- Atenção, diz o comissário. Uma pessoa
está a aproximar-se do contentor. Todos prontos!
São as sete e trinta e dois. Por entre a
escuridão, uma sombra move-se com cuidado para o contentor. Não se vê. As luzes
dos carros estão apagadas.
A sombra pára um minuto. Depois, abre o
contentor e apanha um saco. Será o saco com o dinheiro. A sombra vai-se embora.
A Florida não ouve nada. O seu coração
bate tão forte que sente que todos podem ouvi-lo, incluso a sombra. «Silêncio»,
pensa.
- Peixinho, não o perca.
«Sim, comissário, cr...cr.. se preocupe»,
ouve-se no rádio.
- Onde vai?
«Há um carro.... ul. Parece que .... uma
pessoa. Sim, entra ....carro azul!»
- Entra no carro azul, disse?
«cr...sim»
- Vamos, diz o comissário.
Mas, naquele mesmo momento, um camião pára
em frente do carro do comissário Santos.
26. A SORTE DO LADRÃO
O carro azul corria a grande velocidade.
- Cuidado, disse o Maestro. Não queres que
morramos, suponho.
- Não te preocupes, disse o Passarinho.
Sou um condutor óptimo. Quando era jovem queria ser piloto e correr em ralis.
Aliás, tu não disseste que a mãe do menino podia ter avisado a Polícia?
- É provável, sim. Mas isto não é razão
suficiente para morrermos.
- Pois, se a mãe avisou a Polícia, temos
de escapar, não é?
O Maestro não disse nada.
- Então, temos de correr, continuou o
Passarinho. Corramos, então.
- Mas com cuidado, Ayrton.
- Sim, patrão.
Passaram pelas ruas escuras da cidade,
procurando evitar os postos de Polícia.
- Depois de hoje, eu não vou continuar.
Parto esta noite mesmo. Não quero ter nada com a morte do menino, disse o
Passarinho.
- Podes fazer o que queiras. Em todo caso,
eu não esperava nada mais de ti. Não posso colaborar com uma pessoa que está a
pensar continuamente no seu «pequeno Tomás».
- Não falarias assim se tu também tivesses
um filho...
- Já falámos neste assunto. A tua vida é
tua e a minha é minha.
- Pois é.
Os dois homens ficaram calados durante o
resto do percurso e nem trocaram uma palavra quando chegaram ao seu
esconderijo. Estacionaram, saíram do carro, olharam para todos os lados: não
havia ninguém. Tinham conseguido escapar.
Entraram no esconderijo com o saco nas
mãos. Fecharam a porta e esvaziaram o saco no chão. Quanto dinheiro havia!
- Contamos, dividimos e depois tu vais
embora, como disseste, disse o Maestro.
- Está bem, disse o Passarinho. Espero que
o dinheiro não seja marcado. Não gostaria de ficar preso.
- Vamos ver, disse o Maestro e começou a
examinar as notas. Não, as notas parecem claras, disse depois de pouco.
- Vamos contar, então. Cinquenta, cem,
cento e cinquenta, duzentos...
Frente ao esconderijo, um carro parou. Um
homem alto, magro e bem vestido saíu do carro e foi até à porta. Levantou a mão
e bateu.
O Maestro e o Passarinho ficaram imóveis.
Seria a Polícia?
O homem de fora bateu outra vez.
- Maestro, disse a voz alta, abra a porta.
O Passarinho olhou para o Maestro.
- Sabem quem és, disse. Chamam-te pelo teu
nome!
- Passarinho! ouviu-se o homem outra vez.
- Conhecem a mim também!
- Sou eu, disse então o homem, X!
Graças a Deus! Não era a Polícia, era o
senhor X. Mas não era cedo? O Passarinho meteu o dinheiro no saco outra vez e
escondeu o saco por baixo da cama e o Maestro foi até à porta e abriu-a.
- Porque não me abrem? disse o senhor X,
quando entrou no quarto. Não me ouvem?
- Não o esperávamos tão cedo, disse o
Maestro. Desculpe.
- Tinha dito que voltava hoje por volta
das oito e meia, e são as nove menos vinte, disse o senhor X. Não vim mais
cedo, então.
- Sim, o senhor tem razão, desculpe, disse
o Maestro. Então, tudo está pronto?
- Sim, tudo. O cliente já deu o dinheiro,
o Talho está a esperar o menino e a clínica está a esperar o órgão. Tudo está
em ordem.
- Onde está o dinheiro? disse o Maestro.
Não é a hora do senhor dar o dinheiro que prometeu?
- Sim, claro. O dinheiro está no meu
carro. Vou trazê-lo agora mesmo. Os senhores, entretanto, preparem o menino.
Não temos tempo a perder.
27. UMA CAÇA TERMINADA
O senhor X abriu a mala. Era cheia de
dinheiro. O Joãozinho nunca tinha visto tanto dinheiro junto. Não pôde dizer nada,
porém, porque estava amordaçado outra vez.
- É a soma que concordámos? perguntou o
Maestro.
- Se não confiam em mim, podem contar,
disse o senhor X. A única coisa que posso dizer é que eu mesmo contei o
dinheiro.
O Maestro aproximou-se da mala. Tocou algumas
notas e levantou-as para ver se havia dinheiro por baixo. Podia haver papel em
vez de dinheiro, mas não havia. Tudo parecia bem.
- Não vou contar agora, disse. Mas se
houver algum erro, não vamos colaborar outra vez, fique a saber.
- É lógico, disse o senhor X. Posso levar
o menino, agora? Já é tarde e o Talho está a esperar. E o cliente também.
- Sim, claro que o pode levar, disse o
Maestro.
O Passarinho estava no outro quarto para
não ver.
O senhor X estendeu a mão e agarrou o
Joãozinho.
- Mmmmmm, disse o Joãozinho e procurou
evitar a mão do senhor X. Aonde o levavam? Porque não o deixavam?
- Vem, menino, disse ele. Vamos a um lugar
bonito, vais ver.
- Mmmmm, disse o Joãozinho outra vez.
O senhor X abriu a porta e saíu, agarrando
o Joãozinho com força. Olhou para todos os lados. A rua estava deserta. Foi
para o seu carro, abriu a porta e empurrou o menino para dentro. Foi então,
quando uma década de luzes encenderam-se, todas viradas para o carro do senhor
X.
- Alto, ouviu-se uma voz.
Ao mesmo tempo, o Maestro e o Passarinho
ouviram golpes na sua porta.
- Abram, ouviu-se uma voz. Polícia.
28. VELHOS CONHECIDOS
Como a Polícia os encontrou, nem o Maestro
nem o Passarinho podiam imaginar. A resposta, porém, era simples. O dinheiro
que estava no saco era dinheiro da Polícia, e os policias que tinham preparado
o saco tinham posto um emissor dentro do saco. Assim, quando os raptores
escaparam, os policias puderam segui-los, seguindo o sinal do emissor.
Quando conseguiram encontrar o
esconderijo, o comissário Santos viu o carro estacionado do senhor X e deu
ordens para os policias se esconderem e esperarem um bocadinho antes de
intervir. Tinha razão, porque uns minutos mais tarde, o senhor X saíu, foi para
o seu carro e voltou para o esconderijo com uma mala. O comissário Santos
pensou que podia haver dinheiro na mala. Então, os raptores iam vender o
menino. Era hora de intervir, mas, para ter os resultados melhores teve de
esperar um bocadinho mais. Queria que ficasse bem claro que se tratava de uma
transacção ilegal. Queria prender o homem desconhecido com as mãos na
mercadoria e os raptores com as mãos no dinheiro. E foi exactamente assim como
foram presos todos.
Quando os criminais foram presos, o
comissário Santos saíu do seu carro e com ele saíu a Florida, que correu para o
carro onde estava o Joãozinho. Mãe e filho abraçaram-se e estavam muito
felizes.
Os policias passaram frente da Florida e
do Joãozinho, levando consigo os três presos. O Passarinho olhou o Joãozinho
nos olhos, como se lhe pedisse perdão. O Maestro olhou-o também, mas não havia
nenhum sentimento no seu olhar. Depois deles, vinha um policia com o saco do
dinheiro e com a mala também.
A Florida estava a olhar também os criminais
que lhe tinham privado o seu filho durante tantos dias. Estava tão feliz que
não podia sentir nada por eles. Quando, porém, apareceu o senhor X, a Florida
ficou petrificada, isto é quando uma pessoa fica imóvel.
- João, disse e desmaiou.
O senhor X também ficou estupefacto. Olhou
para a Florida, depois para o Joãozinho, outra vez para a Florida, que estava
no chão... Estes olhos, pensou, estes olhos cravados na sua mente não eram os
olhos do menino, eram os olhos da mãe, que ele, embora pensasse ter esquecido,
levava sempre consigo. E o menino, então...
- Florida, disse a voz baixa, como se
falasse para si mesmo.
Filho, pensou.
Mas não teve mais tempo, porque o levaram
para um carro da Polícia.
Entretanto, a Florida recobrou consciência
e era como se tivesse acordado de um sonho. Tinha visto o João ou não o tinha
visto?
- Mãe, estás bem? perguntou o Joãozinho.
- Sim, querido. Agora que estou contigo,
estou muito bem. Vamos?
29. UM FIM FELIZ, MAS NÃO PARA TODOS
O fim da história já todos o podem
imaginar. O Maestro, o Passarinho e o senhor X, isto é o João da África do Sul
(que na realidade era o João do Brasil, porque tinha ido ao Brasil e não à
África do Sul, como tinha dito à Florida), foram encarcerados, em prisões
diferentes. Foi provado que o João do Brasil, ou senhor X, era uma ligação
portuguesa muito importante do bando brasileiro, e deu muitas informações à
Polícia sobre o bando criminal. Todas as ligações portuguesas foram descobertas
e o comissário Ramos foi promovido. O comissário Santos, também, recebeu uma
menção honrosa, por ter ajudado na solução do caso.
A mulher do Passarinho separou-se dele e
foi para o Brasil, onde o pequeno Tomás aprendeu a falar com acento brasileiro.
A Polícia devolveu o dinheiro do casal Rodrigues. A senhora Begonha, então,
sentiu muito aliviada por ter as suas poupanças íntegras e continuou a asistir
telenovelas, pensando que algumas vezes na vida real também há fins felizes.
E o que aconteceu com o Joãozinho? Ficou a
saber que o senhor X era o seu pai? A Florida disse-lhe a verdade, ou preferiu
ficar calada sobre o assunto?
Isto, sinceramente, não o sei. Somente sei
que, quando os dois se encontraram, e depois da Florida ter agradecido ao
comissário Santos tudo o que ele tinha feito por ela, os dois voltaram para
casa. Lá, o Joãozinho viu o pacote que estava na sua cama.
- Ó, mãezinha, disse, o que é isto?
- Bom, filhinho, respondeu ela, isto é o
teu presente para o ano novo.
- Mas ainda é cedo. O pai Natal não
chegou. Faltam tantos dias.
- Pois, este ano, só para ti, fez uma
excepção. Trouxe-te o teu presente mais cedo.
- Que bom! disse o Joãozinho e começou a
abrir o pacote.
A Florida estava a olhá-lo, muito
comovida.
- Um carro vermelho! disse o menino e ficou
com a boca aberta. E é novo, não é?
- Sim, meu querido, disse a Florida. É
novo e é para ti.
- Obrigado, mãezinha! disse o Joãozinho e
abraçou-a com ambas as mãos.
FIM