quinta-feira, 12 de julho de 2018

A HISTÓRIA INTEIRA



                                       1. ERA UMA VEZ

Era uma vez uma menina muito bonita e muito ingénua, que se chamava Florida Pestana. A Florida era tão bonita que parecia como uma flor, cheia de perfumes. Aliás, por pura coincidência, a Florida tinha umas pestanas longuíssimas, como fios de seda. Ora, muitos vão pensar que a Florida, sendo tão bonita, era uma pessoa muito sortuda, mas, infelizmente não era assim. Porque a Florida perdeu os seus pais quando era muito pequena, e quando dizemos «perdeu» na verdade queremos dizer que morreram, mas não o dizemos para os mais pequenos não ficarem muito tristes. Mas vocês já são grandes, algúns já vão à escola, por isso podem ouvir a verdade toda.
Então, os pais da Florida morreram, já se sabe, e a pobre menina ficou sem família. A vida é dura e difícil para as pessoas que estão sozinhas no mundo, isto também é um facto, e a Florida teve uma vida difícil, mas conseguiu crescer e tornar-se uma mulher muito amável.
Foi então quando a Florida conheceu o João, um jóvem muito bonito também, loiro como o trigo em Júnio e agradável como um agasalho nos dias frios de Janeiro. A Florida apaixonou-se por ele e ele prometeu-lhe uma vida feliz, coisa que ninguém conhece bastante para saber como é. Fizeram muitas coisas os dois juntos e um dia nebuloso a Florida descobriu que estava grávida. Isto é quando uma mulher tem um bebé dentro da barriga. Porque muitos dizem que a cegonha traz os bebés, que parcialmente podia estar certo, dado que, metaforicamente, um pássaro traz os bebés (podem buscar a palavra «metaforicamente» num dicionário), e outros dizem que os bebés vêm da França, coisa que certamente não está certa, dado que a França exporta muitos productos mas não exporta bebés.
A Florida ficou muito surpreendida quando viu que estava grávida, porque ela acreditava também na história da cegonha, e não era como vocês que sabem muito bem que os bebés vêm da barriga da mãe. A pobre menina não sabia o qué fazer mas achou boa ideia informar o João sobre o assunto.
Foi então quando o João lembrou que tinha de fazer uma viagem urgente à África do Sul por assuntos familiares, mas prometeu-lhe que ia voltar pronto. A Florida despediu-se de ele cheia de lágrimas e de esperanças e passou duas semanas encerrada no seu quarto, lendo as cartas de amor que o João lhe tinha escrito.
Mas o João não voltou. E os meses passavam e a barriga da Florida crescia como um balão. E foi daquele balão que veio no mundo (neste mundo, quer dizer) o filho da Florida. No dia 13 de Abril a Florida tornou-se mãe e o João tornou-se filho dela. Porque a menina ingénua ainda amava o João e, para o ter de alguma maneira perto dela, deu o nome dele ao seu filho. Mas, infelizmente, não sabia o apelido do pai do Joãozinho, por isto foi que o João só tinha um apelido e este era o apelido da Florida, quer dizer Pestana.
Ora muitos vão dizer que a aventura do pequeno João Pestana começa aqui, dado que cada pessoa que nasce enfrenta um desafio, mas eu, já conhecendo a história, digo-vos que a grande aventura dele ainda não começou. Tenham paciência, então, porque, como o provérbio diz, saber esperar é uma grande virtude.
O filho da Florida, então, se chamou João Pestana e era um menino excepcional. Do pai tinha o cabelo de trigo e da mãe tinha o coração de oiro. Mas o pequeno João tinha também um poder propriamente seu: tinha uma voz muito doce e quando falava provocava sono às pessoas que o ouviam. Naturalmente, ninguém conhecia este poder quando ele era muito pequeno, porque todo o mundo sabe que os bebés não falam. Nem sequer ele o sabia.
O Joãozinho era um bebé muito tranquilo e gostava muito de dormir. Às vezes sonhava com caramelos, casinhas de açúcar e flores de chocolate e, então, no seu rosto rosado aparecia um sorriso grande. Às vezes sonhava com tempestades e céus cinzentos, escuros, e acordava chorando. Porque o Joãozinho tinha medo das tempestades e dos trovões. Quando o tempo era muito mau e o João chorava por causa dos trovões, a Florida secava-lhe os olhos, explicando-lhe que não devia ter medo dos trovões porque são o tambor do céu e que quando se ouve o tambor do céu é porque os anjos têm festa e dançam.
Os dois viviam com muita pobreza mas com muito amor também. Quando não tinham bastante para comer, ela fingia que já tinha comido, para deixar ao seu filho a pouca comida que havia. Bordava a ropa dele com jotas de várias cores, cantava-lhe cançãozinhas infantis que ela mesma inventava por ele, contava-lhe contos de princesas encantadas e dragões de hálito ardente, tudo o que ela podia imaginar. A pobrezinha, procurava dar-lhe toda a felicidade que ela nunca tinha experimentado.
Pronto, o Joãozinho proferiu as suas primeiras palavrinhas, pois começou a dar os seus primeiros passos, primeiro como um cãozinho, gatinhando com grande velocidade por todo o lado, pois como uma pessoa de verdade, com os pés, baloiçando no início e gradualmente ganhando confidência.
A Florida era muito feliz mesmo, e cada dia acordava cheia de curiosidade para ver qual seria a próxima coisa engraçada que o seu filhinho fazia. Como cada mãe respeitável, queria o melhor para ele e procurava ajudá-lo para no futuro ele ter uma vida mais fácil do que a vida dela.
Por isto, quando o Joãozinho chegou à idade precisa, a sua mãe inscreveu-o na escola do bairro. Porque, como se diz, a educação abre portas, quer dizer que quando uma pessoa estuda, tem mais oportunidades na vida.
O primeiro dia de escola foi muito difícil para os dois. O Joãozinho chorava levemente, e o seu rosto era vermelho por chorar tanto. A Florida continha-se porque era a maior e os maiores (isto o digo porque muitos não o sabem), mesmo quando parecem que não sentem nada só o fazem para não parecer débeis. A pobrezinha, sorria por fora mas, por dentro chorava sem parar.
O Joãozinho sentia-se sozinho porque não conhecia ninguém. Escolhiu uma carteira num canto da aula, sentou-se e apoiou a sua cabeçinha loira com ambas as suas mãos, olhando melancolicamente para o chão. Imaginava que os azulejos do chão eram como um tabuleiro de xadrez, e começou a imaginar os peões alegres correndo por todo o lado, os bispos austeros praticando artes marciais, as torres fortes, o rei bondoso, a rainha poderosa e os cavalos imprevisíveis galopando entre as carteiras, sem cavaleiros, relinchando de vez em quando.
A situação tornou-se muito divertida quando começaram as batalhas entre os peões. Logo, quando o rei foi morto por um peão atrevido, a rainha não mostrou nenhúm sinal de preocupação por ele, e o Joãozinho ficou muito estranhado. A batalha continuava diante dos seus olhos, quando o nosso amigo ouviu que a rainha estava a chamá-lo pelo seu nome. Mas, como podia a rainha saber o nome dele? Que mistério! Os peões começaram a rir-se. Foi então quando o Joãozinho abriu os olhos e viu que a professora estava à sua frente, olhando-o e chamando-o pelo seu nome. Os outros alunos estavam a rir-se, exactamente como os peões. O quê tinha acontecido?
O coitadinho tinha adormecido sem dar conta, e quando a professora entrou na aula, ele já estava a dormir, com a sua cabeçinha loira apoiada sobre a carteira. Que vergonha! Um homem já, de 6 anos de idade, a dormir durante a aula! Tornou-se vermelho como uma papoila. Os outros alunos não paravam de rir. Sentiu vontade de chorar mas, já o dissemos, era um homem, tinha 6 anos. Preferiu sofrir por dentro.
A professora, que era muito simpática e gostava muito do seu trabalho, disse aos alunos para deixarem de rir e deu ao Joãozinho as boas-vindas. Mas, quando o chamou pelo seu nome inteiro, os alunos desataram a rir outra vez e, para falar a verdade, desta vez riram mais. Até que começaram a gritar ritmicamente «João Pestá-na! João Pestá-na! João Pestá-na!». Porque este nome, quer dizer o nome dele, concordava com o episódio anterior. Foi assim como o nome João Pestana em vez de ser somente um nome, começou a ser nome e apodo ao mesmo tempo. E não havia maneira de mudar a situação.
Muito pronto, toda a escola sabia dele e do episódio e, muitas vezes, alunos de outras aulas que ele não conhecia, chamavam-no pelo seu nome inteiro, rindo e mostrando-o com o dedo índice aos outros alunos, coisa que não é sinal de pessoa educada. Naqueles momentos, o pobre menino sentia-se muito mal e, como era tímido, ia embora e escondia-se no retrete até o intervalo terminar.
A situação piorou mais tarde, quando o rumor que o João Pestana não tinha pai correu por toda a escola. Isto, como sabemos nós, não era verdade, porque já sabemos que o pai do Joaõzinho era o João da África do Sul e, mesmo se não o soubéssemos, sabemos muito bem que todas as crianças têm pai e mãe, só que algúns pais e mães vivem longe ou já não vivem mais. Aliás, segundo a igreja, todos somos irmãos porque somos filhos de Deus, não é assim?
Mas os alunos da escola talvez não o soubéssem. Pouco a pouco, começaram a chamá-lo «bastardo». O Joãozinho não sabia o que significava esta palavra, nem tinha dicionário em casa para a buscar, mas sentiu que não era coisa boa. Se vocês buscarem a palavra no dicionário, vão ver que tinha razão. É uma palavra muito cruel para ser dirigida a qualquer pessoa, muito menos a uma criança tão frágil como ele. Eu, pessoalmente, não a tenho usado nunca. A única razão pela qual me referi a ela, foi para vos avisar. Porque para evitar um perigo é preciso saber qual é o perigo. Agora que vocês conhecem esta palavra, tenho a certeza que, como meninos bem educados, não a vão usar nunca.
O Joãozinho sentia muito infeliz, mas não dizia nada à sua mãe porque não queria dar-lhe nenhúm desgosto. Felizmente, o intervalo não durava muito, e a maior parte do dia passava-a na aula, aprendendo muitas coisas que nem sequer imaginava. Pouco a pouco aprendeu coisas como o alfabeto, os números, os animais, as árvores, e quanto mais aprendia mais ainda lhe faltava para aprender. Porque os conhecimentos não terminam nunca. E se vocês podem guardar um segredo, ei-lo: ninguém conhece tudo, nem sequer os nossos pais. Fiquem também a saber que vale a pena aprender mais coisas. Mas não vou dizer mais porque já disse mais do que devia. Há coisas que vocês têm de descobrir sozinhos. Sinto muito.
O Joãozinho gostava muito da escola e estudava sempre. Não houve nem sequer um dia que ele foi à escola sem ter estudado nada, como fazem muitos meninos e meninas. Mas havia um problema. Quando o nosso amigo abria a boca e começava a falar, todos aqueles que o ouviam adormeciam, incluso a professora. Um dia a professora pediu-lhe para ler uma frase que estava escrita no quadro-negro e todos dormiram por dez minutos. Um outro dia a professora pediu-lhe para falar sobre o que tinham aprendido no dia anterior, e todos dormiram até ao intervalo seguinte. Depois disso, a professora nunca mais lhe pediu para falar na aula, embora ele, como aluno bom que era, levantasse o dedo índice pedindo licença para falar. Mas, mesmo assim, o menino não deixou de estudar. Enfim.
A Florida estava muito orgulhosa do seu filhinho, como todas as mães o são, e esperava algún dia poder oferecer-lhe muitos presentes. Mas, já o dissemos, era muito pobre e não podia comprar-lhe quase nada. Porém, isto não significa que não pudesse dar-lhe um presente estupendo. Porque, como disse uma pessoa muito erudita, as coisas mais caras são aquelas que não custam nada. Assím, um dia de Dezembro, com o Natal aproximando e as montras encheando-se com decorações natalícias, a Florida foi à escola do Joãozinho, e quando ele saíu, ela abraçou-o e disse-lhe que iam passar o resto do dia juntos. Que presente tão caro! Que alegria tão grande! O Joãozinho estava muito contente mesmo.
Caminharam pelas ruas da cidade, olhando ora aqui ora ali, e falando sem parar, porque a Florida era imune ao sono que o seu filho provocava aos outros, quer dizer que ela não se adormecia quando o pequeno João falava. Então, os dois comunicavam entre si perfeitamente.
Viram montras com ropa para mulheres e para crianças, viram montras de pastelarias com apetitosos bolos de chocolate, perfumados biscoitos de canela em forma de estrelas e deliciosos bolos-reis, e, naturalmente, viram muitas montras com brinquedos de todo tipo: bonecas de ropa elegante, casas de bonecas enormes, onde podia caber uma criança de três ou quatro anos – mas o Joãozinho certamente não cabia –, carritos de várias cores, cavalinhos de várias dimensões... O menino ficou entusiasmado. Nunca na sua vida tinha visto tantos brinquedos juntos.
Então, a Florida teve uma idea. «Porquê não vamos ao centro comercial?» propôs. «Disseram-me que há uma enorme árvore decorada com caramelos, e, no sector dos brinquedos, há um castelo enorme com bonecos grandes que movem sozinhos». O Joãozinho abriu os olhos tão grandes, que a sua mãe nunca tinha visto. «Siiiiiiiiiim», disse em voz tão alta que chegou até ao céu. Bom, até ao céu não, mas seguramente chegou muito alto. E certamente chegaria até mais alto, se o nosso amigo soubesse que a sua grande aventura estava a aproximar, galopando como um cavalo selvajem.
Apanharam o autocarro e, depois de um pequeno percurso entre o barulho do tráfico, que ao Joãozinho pareceu infinito, chegaram ao centro comercial. O Joãozinho nunca tinha visto coisa semelhante na sua vida. Quanta gente, meu Deus! Algúns estavam sozinhos, outros estavam com os seus filhos ou com os seus amigos, e todos tinham sacos com presentes nas mãos. No ar ouvia-se música alegre da época. Havia também tantas cores, e tantas luzes acesas! Era como um conto infantil.
Foi então quando o pequeno João perdeu a sua mãe. Ora, quando dizemos que a perdeu, desta vez estamos a falar literalmente, quer dizer que o Joãozinho perdeu a sua mãe e não a podia encontrar em nenhuma parte do centro comercial. O mesmo aconteceu com a Florida: perdeu o seu filhinho e não podia encontrá-lo.

                      2. O HOMEM DO RABO DE CAVALO
                                    
Como foi isto possível ninguém sabe dizer exactamente. Somente podemos imaginar. O mais provável foi que em algum momento o Joãozinho deixasse a mão da sua mãe sem dar conta, quando estava a olhar, maravilhado, por todo o lado, e depois com toda esa multidão que ia e vinha é também provável que não lhe fosse possível encontrar a mão materna outra vez. Olhou por cá, olhou por lá, chamou o nome dela, mas não havia nem rasto da Florida. A verdade é, claro, que a Florida não desapareceu, mas não estava no posto certo, e por isto foi que nem ela nem ele podiam encontrar-se.
Os olhos do Joãozinho enceiaram-se de lágrimas e a sua visão tornou-se turva, piorando a situação. Muito pronto, o nosso amigo perdeu toda esperança de encontrar a sua mãe. Foi então quando apareceu o homem do rabo de cavalo.
- O quê está a acontecer, menino? perguntou sorrindo para ele.
- Perdi – a – mi – nha – mã – ãe, respondeu ele entre soluços.
- Já sabia eu que eras tu, disse o homem. A tua mãe mandou-me para te levar a ela. Está aqui perto, numa loja de brinquedos, adicionou mostrando com a sua mão direita. Tinha um anel de oiro no dedo pequeno. Ora, deixa de chorar. Vamos para ela. Vai.
O Joãozinho secou os seus olhos e olhou para o homem. Era alto, moreno e muito magro, e tinha os olhos pequenos e muito escuros. Usava óculos redondos e tinha o cabelo comprido, como já dissemos. Usava calças de ganga e botas de pele. Tinha também algumas rugas ao lado da boca e ao lado dos olhos.
 Não parecia ser uma pessoa má. Pelo contrário, era simpático e parecia ser muito sério, talvez por causa dos óculos redondos. O homem sorriu outra vez. Os seus dentes eram brancos. Estendeu a sua mão do anel para o Joãozinho a pegar.
- Pega na minha mão, disse, para não te perderes na multidão.
O anel estava a reflectir as luzes acesas que estavam por cima deles.
Ora vocês já estão a gritar para ele não pegar na mão do homem, porque são meninos espertos e sabem muito bem que um menino não deve fiar de nenhuma pessoa que não conhece bem. Mas o Joãozinho, coitadinho, estava tão preocupado pela sua mãe que não podia pensar claramente.
Então, estendeu a sua mãozinha e pegou na mão do homem do rabo de cavalo. Era uma mão áspera e um bocadinho fria. O homem apertou a mão do Joãozinho e começou a andar com passos grandes. O Joãozinho começou a correr, para poder seguí-lo. Viu as lojas que passavam frente aos seus olhos e a gente que se abria para os dois poderem passar, e a música do local estava a misturar-se com o barulho da gente, e o nosso amigo pequeno sentiu-se confundido. Mas não disse nada. Só pensava na sua mãe, que seguramente estaria muito preocupada por ele.
- Aonde vamos? só teve tempo para perguntar.
- Não te disse? À tua mãe.
Um guarda gordo estava na entrada.
- Vem por aqui, disse o homem ao Joãozinho e puxou-o para a direcção oposta.
Já estavam fora do centro comercial. Mas, onde estava a sua mãe? Teria ido tão longe? O homem repetia continuamente «por aqui» e continuava a andar depressa. Passaram muitas lojas, alguns cafés e uma loja de brinquedos e entraram numa rua estreita sem muitas luzes. Não havia muita gente lá.
O Joãozinho começou a pensar mais claramente. A sua mãe não gostava dos lugares escuros, e muito mais quando era de noite. Aliás, não havia lojas naquela zona. Seria que aquele homem lhe tivesse mentido? Procurou libertar-se mas a mão do homem era como uma tenaz.
- Largue-me! disse, mas o homem nem reparou. Largue-me! repetiu.
Foi então quando o homem o ouviu.
- Mas já chegamos, disse. A loja fica a dois passos de aqui.
- É mentira! gritou então o Joãozinho. A minha mãe não está aqui. O senhor mentiu!
O homem parou e voltou para ele, sem soltar a sua mãozinha.
- Olha aqui, menino, disse e a sua voz tornou-se rouca, vem comigo como menino bom, ou sei eu muito bem como fazer-te vir comigo sem mais. Estamos?
O Joãozinho sentiu muito medo do homem, talvez por causa da sua voz, que parecia vir do estômago da terra, se a terra tivesse estômago. Sentiu muito mais medo do que sentiria se ouvisse vinte trovões juntos.
- Mexe-te, disse o homem.

                          3. ENTRE MAESTRO E PASSARINHO
                                     
Foram para um carro que estava estacionado ao lado de um contentor de lixo. O carro parecia vazio, mas quando o homem abriu a porta, o Joãozinho viu que havia condutor.
- Entra, disse o homem e empurrou o menino para dentro do carro. Entra, repetiu.
- Ó, Maestro, tardaste muito, disse o condutor.
- Achas que é fácil? perguntou-o o homem. Pára com as brincadeiras. Anda, vamos, que não quero perder mais tempo.
- Este é o menino?
Olhou-o através do espelho.
- Parece fraco, adicionou.
- Tu não te metas nisto. O teu trabalho é conduzir. Anda, disse o Maestro.
                 Parecia zangado.
- Tu és quem sabe melhor, sim senhor, disse o condutor. Mas não gosto deste menino. Tenho certeza que vai levar-nos problemas, ou o meu nome não é Passarinho.
- A ti não te pagam para pensar.
- Só disse...
- E não te pagam para dizer a tua opinião. Conduz!
O Passarinho arrancou o motor e começaram a correr pelas ruas da cidade. Todo este tempo o Joãozinho estava a observar o Passarinho. E o Passarinho era tudo o contrário daquilo que significava o seu nome. Era gordo, calvo e tinha grandes bigodes. Embora fosse inverno, usava uma camisa de manga curta e o seu braço desnudo era cheio de cabelos. Tinha também um dente de oiro e usava um anel grande no dedo pequeno.
O Joãozinho, que era um menino inteligente, pensou que devia procurar memorizar o caminho e, então, deu atenção às imagens da cidade que passavam rapidamente frente aos seus olhos.
Mas não era nada fácil. Primeiro, era já noite e as ruas eram muito escuras. Segundo, o menino não conhecia a cidade e não podia reconhecer nada. Terceiro, era bastante tarde e o miudo tinha vontade de dormir. Porém, decidiu combater o sono e procurou manter os seus olhos bem abertos.
Passaram por ruas onde as casas pareciam iguais. Eram casas velhas, com azulejos nas façadas, mas sem nada especial. Passaram fora de uma igreja, e foi então que o Joãozinho deixou a sua tarefa durante unos minutos para rezar. Pediu a Deus para o salvar e para proteger a sua mãe, que já agora estaria como louca pela preocupação. Naquele momento ouviram-se os sinos da igreja e o nosso amigo, como normalmente fazemos todos em tais casos, pensou que isto era um sinal que mostrava que Deus tinha ouvido a sua reza. Claro, ninguém pode garantir que as coisas eram assim, mas ele sentiu-se melhor.
O carro corria por ruas escuras e tranquilas. O Maestro não olhava fora nem falava, tinha toda a sua atenção virada para o Joãozinho.
- Atenção, disse de repente ao Passarinho. Corre, mas há limites de velocidade. Ou queres que nos apanhe a polícia das estradas?
- Perdão padrão, disse o Passarinho. Distraí-me. Estava a pensar na minha mulher. Disse que me vai deixar.
- Não me digas! disse o Maestro, mas era evidente que estava a falar com ironia, quer dizer que falava como se se importasse, mas era evidente que não se importava nada. Escuta, filho, tu és quem devia ter terminado este matrimónio. A tua vida não tem nada a ver com a vida de uma pessoa de família. A família faz mal a pessoas como tu e como eu, porque põe limites e a gente como nós precisa de libertade absoluta para viver. Menos mal, então, que a tua mulher tomou a decisão certa, já que tu evidentemente não podias. Tu, tranquilo, disse ao Joãozinho, que tinha mexido um bocadinho.
- É fácil falar assim quando uma pessoa não tem filhos. Mas eu tenho um filho, esqueceste? Se ela me deixar, vai levar o meu filho com ela, e não vou ver o meu pequeno Tomás nunca mais.
- E que queres que faça? Preferes ter o teu filho contigo? Que tipo de vida vai ter? Que tipo de pessoa vai ser? Ou pensas que tu e eu somos pessoas exemplares para a sociedade? Deixa o menino. Talvez tenha mais sorte longe de ti.
Ficou pensativo.
- Olha, eu também podia ter família. Não me faltaram as oportunidades. Porém preferi viver sozinho para não levar mais gente ao chamado «mau caminho». Tu foste débil, mas agora tens a oportunidade de arranjar tudo. Deixa a mulher. Finge que nunca existiu. Finge que o filho não é teu. É melhor para ele. Para ti também.
- E agora este trabalho, disse o Passarinho. Na próxima vez, por favor, escolhe outra vítima. Um homem ou uma mulher. Não mais crianças. Dói-me o coração.
- Tu não és homem, disse o Maestro e cuspiu no ar.
A conversa terminou. O Joãozinho sentiu compaixão para o Passarinho. Em fim, o homem tinha coração. Encuanto que o outro... De repente viu a sua mãe, que lhe estava a dizer «Todos têm coração, meu amor. Nunca te esqueças». Por pouco chamou-a, mas deu conta que a sua mãe estava na sua imaginação e parou. Uma lágrima caíu na sua face.
- Isto é o que faltava! disse o Maestro. Pára de chorar, as lágrimas não te vão salvar. Ó, Passarinho, olho na rua, desgraçado! Queres matar-nos?
Silêncio caíu dentro do carro. O Joãozinho perdeu toda esperança de voltar a ver a sua mãe. Já tinha passado muita hora desde quando tinham partido. Parecia que estavam a chegar às fronteiras do país.
- Por fim, disse o Maestro de repente. Pensei que não chegávamos nunca.
Devagar e com os farois apagados, entraram numa garagem. O Maestro saíu do carro e disse ao Joãozinho para ele sair também. O Passarinho ficou dentro. Disse que ia comprar alguma coisa para comerem.
- Compra alguma cerveja também, disse-lhe o Maestro e empurrou o menino para uma porta de metal. 

                                4. PRISIONEIRO
                                      
A porta estava aberta. Entraram num quarto pequeno, escuro e sujo, quase vazio. Só havia duas cadeiras, uma mesa e uma cama pequena. Num canto, no chão, havia também um telefone. Funcionaria? O quarto havia uma janela e duas portas mais. Cheirava a mofo. O Maestro abriu uma das portas e disse ao Joãozinho para entrar. Ele obedeceu e quando entrou, o homem fechou a porta à chave. O Joãozinho ficou sozinho.
- Fica tranquilo, disse o Maestro. De aqui não escapas.
Tinha razão. O quarto era ainda mais pequeno do que o outro e não tinha janelas. Só havia uma cama pequena desarrumada, e uma bandeja com um copo e um prato vazios no chão. Parece que ele não era o primeiro residente do lugar.
 Arrumou a cama e sentou-se. Estava muito frio e não havia calefacção. O coitadinho começou a tiritar. Cobriu-se com o cobertor, mas mesmo assim não conseguia aquecer-se. Que horas seriam? Se agora estivesse em casa, já estaria na sua cama, teria bebido um copo de leite quente e a sua mãezinha estaria a contar-lhe uma história engraçada como só ela sabia contar. Ouviou a outra porta do lugar abrir. A porta depois fechou e no quarto contíguo houve vozes. Obviamente, o Maestro não estava sozinho. O Passarinho teria voltado. Procurou perceber o que estavam a dizer, mas estavam a falar baixo e não conseguiu perceber nada.
Mas, pronto os dois homens começaram a discutir e o tom da conversa subiu. O Joãozinho pegou a orelha na porta para poder ouvir melhor.
- Como que não tem cliente? perguntava o Maestro.
- Disse-me que ultimamente não há mercado para crianças tão grandes.
- Como que não há mercado? O menino não é tão grande. Não terá mais de cinco anos.
- Mesmo assim, disse que agora só se vendem bebés de alguns meses e não crianças que vão à escola. Aliás, há também o mercado de China e é muito difícil combater os chineses, disse.
- Sabes o que digo eu? Que o tipo está a brincar connosco. Não nos disse no outro dia que se conhecíamos algum menino, porque tinha um cliente exigente que não podia esperar? Pois, onde está aquele cliente? Sumiu?
- Podia ter mentido...
- Ou podia estar à procura de outros fornecedores, mais baratos.
- Mais baratos do que nós não há, seguro.
- E o chineses? Porquê será que se referiu aos chineses? Achas que foi pura casualidade?
- Sei lá...
- Sabes lá, sabes lá, está certo que não foi. Pensa nisto: na China, cada dia nacem miles de bebés. Aqui, quantos bebés nacem por dia?
- Sim, parece lógico, mas mesmo assim penso que o Raposo somente perdeu o cliente...
- Não sejas tão estúpido, Passarinho. O Raposo quer sair à francesa, mas não sabe bem com quem se mete. Ele também tem padrão. Ó Passarinho, nem podes imaginar aonde posso chegar. Vou dar ao nosso amigo uma ensinadela que nunca vai esquecer, descuida-te.
- E o que vamos fazer com o menino?
- Procuro eu o cliente.
- Tu?
- Sim, não achas que sou capaz? Mas, antes de tudo, quero saber uma coisa. Ó, tu, ranhoso!
O Joãozinho apanhou um susto! O Maestro já estava atrás da porta. O nosso amigo quase ficou paralisado. Por pouco não o apanharam com a orelha pegada na porta!
- Diz-me lá, disse o Maestro quando abriu a porta. Quantos anos tens?
Que devia responder? A sua mãe dizia-lhe sempre que devia dizer a verdade, mas aqueles homens, como parecia, queriam vendê-lo e, como disse o Maestro, não havia mercado para crianças grandes. Então, decidiu dizer uma mentira para se salvar.
- Não ouves? perguntou o Maestro. Perguntei-te uma coisa.
- Tenho dez anos, disse ele porque dez anos lhe parecia uma idade bastante grande.
- Não digas parvoíces. Não pareces ter mais de cinco.
O Joãozinho pensou insistir na sua mentira.
- Tenho dez anos, repetiu. Vou cumprir dez dentro de três meses.
- Achas que és tão esperto? perguntou o Maestro, bocejando um bocadinho. Pois sei eu uma maneira de saber a tua idade. E sabes como? Os teus dentes não mentem, miudo. Vão dizer-me toda a verdade sobre a tua idade. Abre a boca para eu ver.
- Pois, disse o Joãozinho, a verdade é que tenho oito anos.
- Então, já começaram os saldos? Mesmo assim, abre a boca.
Agarrou-lhe a cabeça e abriu-lhe a boca com as suas mãos que eram muito fortes.
- Pois sim, disse com prazer. Os dentes novos de frente já aparecidos, mas ainda não completamente. Cinco ou seis anos, ao máximo.
O Joãozinho ficou triste, mas, por outro lado, aprendeu uma coisa: que além dos cavalos, os dentes servem também para calcular a idade das crianças pequenas.
O Maestro saíu e fechou a porta outra vez.
- Amanhã vou procurar um cliente, disse ao Passarinho.
O Joãozinho ficou sozinho outra vez, mas foi para uns minutos só. A porta abriu outra vez e apareceu o Maestro, com uma sandes de fiambre e um copo de leite nas mãos.
- Toma, disse-lhe. Não queremos deixar-te morrer de fome.
- Tenho frio, disse o Joãozinho.
O Maestro suspirou.
- Quando digo eu que as crianças são um mau deste mundo tenho razão. Filhos mimados, todos! «Tenho frio, tenho fome, quero isto, quero o outro...» E eu não tenho muita paciência.
O Passarinho apareceu na porta com um cobertor nas mãos.
- E eis o anjo bom, já na porta, com um cobertor para o nosso príncipe não sentir frio! Tu não és homem!
O Maestro, zangado como era, saíu do quarto e o Passarinho deixou o cobertor sobre a cama. «Boa noite» disse a voz baixa e saíu ele também. Depois, fechou a porta à chave.
- E não faças barulho, ouviu-se a voz do Maestro, ou sei eu bem como fazer-te calar.
O Joãozinho ficou sozinho, e desta vez seria para toda a noite. Bebeu o leite, que era frio, e comeu a sandes, que não era muito fresca. Depois, deitou-se na cama e cobriu-se com os dois cobertores. Menos mal que havia luz no quarto. Assim, pelo menos, havia uma fonte de calor.
Foi difícil acalmar. Era a primeira vez que ficava sozinho de noite e a presença dos dois homens tão perto dele não era nada confortante. Aliás, tinha medo dos ratos. E se naquele lugar, que era tão sujo, havia ratos? Oxalá não houvesse. O Cristovão Colombo, alcunha do Cristovão Calumba, que era aluno da segunda e que tinha andado pelo mundo, dizia que os ratos podem comer a cara de uma pessoa se têm fome. O Joãozinho cobriu a sua cabeça com os cobertores. Assim, nenhum rato podia comer-lhe a cara. Foi muito tarde quando conseguiu dormir.

                                   5. NUM BAIRRO ESCURO
                                 
E agora vamos deixar o nosso amigo – que de qualquer maneira não vai a nenhuma parte – e voamos, com as asas da nossa fantasia, fora daquele local, por cima da cidade que está a dormir, ninada pelo sopro do vento da noite. Voamos por cima dos telhados, por cima das cúpulas das igrejas, passamos por bairros ricos e por bairros pobres, e entramos num bairro tranquilo, escuro, onde não há luzes acesas. Mas, que é isto? Será luz? Vamos mais perto para ver melhor. Sim, é verdade. Numa janela há luz. Alguém estará acordado. Quem será? Entramos?
Dentro de um quarto pequeno, onde há uma cama, um armário, uma mesa pequena com alguns livros encima e duas cadeiras ao lado dela, há uma mulher jovem e bonita que está a chorar. Os seus olhos estão vermelhos por ter chorado muito. Está sentada numa das cadeiras e nas suas mãos tem uma camisa azul com um jota azul escuro bordado num bolso. Olha a camisa e chora. É a mãe do Joãozinho.
A pobrezinha não conseguiu fazer nada para encontrar o seu filho e por isto está tão triste. Quando, no centro comercial, deu conta que tinha perdido o Joãozinho, e depois de o ter procurado por todo o lado, foi directamente à Polícia. Pediu ajuda para encontrar o seu filho, mas o comissário disse-lhe que não podiam fazer nada, sem primeiro não passarem vinte e quatro horas. Muitas vezes, adicionou, as crianças fogem mas, normalmente voltam para casa dentro de vinte e quatro horas. Provavelmente o mesmo tivesse acontecido com o João.
Mas como isto era possível? Eles não sabiam quanto bom era o seu Joãozinho. Ele não fugiria nunca porque a queria muito. Aliás, era uma criança pequena e não conhecia como voltar a casa. Como podiam ser tão indiferentes? Ela chorou, suplicou, ameaçou, mas não conseguiu nada. O comissário mandou-a para casa, porque se o Joãozinho voltasse e não a encontrasse, provavelmente ia-se embora outra vez.
Com o coração muito magoado, a Florida voltou para casa e sentou-se numa cadeira, com a sua atenção virada para fora, procurando ouvir os passos do seu filho a chegar a casa, dando um salto cada vez que ouvia algum som fora da porta e depois desiludindo-se quando dava conta que não havia ninguém. Não comeu nada, nem mudou de postura. Somente quanto caíu a noite, levantou-se, acendeu a luz, tomou uma camisa do Joãozinho nas mãos como se fosse ele mesmo e sentou-se outra vez. Nesta postura é que a vemos agora. É uma pena que não possamos confortá-la.
Fora da janela da Florida, as nuvens reúnem-se como se tivessem segredos para contar. Talvez estão a falar do Joãozinho, talvez de algum outro. Mas não parecem ser muito educados, falam todos juntos, interrompem o um ao outro, alguns falam mais alto, outros começam a falar mais alto ainda para ser ouvidos, pouco a pouco a situação passa os limites e começa uma rixa forte. Ouve-se muito barulho, há bofetadas, palavrões, mas no fim, todo se resolve com um choro enorme.
A Florida ouve os trovões e vê a chuva forte que cai fora da janela. Pensa no seu filho. Onde estará? Quem estará com ele para o acalmar, já que tem medo dos trovões? A pobre mulher não pode parar de chorar e as suas lágrimas são maiores do que as maiores gotas da chuva.

                                   6. ASSUSTADO
                                     
Longe da sua casa, o Joãozinho acordou assustado. Que trovões, meu Deus! Onde estava a sua mãezinha querida? Começou a chamá-la, várias vezes. Então, ouviu-se um trovão e a porta do quarto abriu.
- Não te disse para ficares tranquilo? disse o Maestro. Porque gritas? Não sabes que quando chove há trovões? Pára com os gritos, ou não acabas bem, aseguro-to. Percebes, ou estou a falar para o boneco?
- É apenas uma criança, disse o Passarinho que entrou também no quarto. As crianças têm medo dos trovões. O meu Tomás...
- Pára tu também com o teu Tomás! Preciso de dormir e se este miudo não me deixar dormir, não vou poder trabalhar amanhã! Preciso de ter a cabeça clara, para conseguir encontrar um cliente que valha.
O Passarinho olhou para o Joãozinho. Ele continuava a chorar, mas muito baixo, como se estava a murmurar. O seu Tomás também tinha medo dos trovões. Sentiu compaixão pelo menino.
- Anda tu, disse ao Maestro, e eu fico com o miudo. Não vai gritar mais. Anda!
- Tu não és homem, disse o Maestro enquanto saía do quarto. Vou fechar à chave.
Fechou a porta.
- O que é isto, menino? perguntou o Passarinho. Não sabes que não deves ter medo dos trovões?
O Joãozinho olhou para ele. Sabia a história do tambor do céu?
- A minha mãe diz que os trovões são o tambor do céu, disse a voz baixa.
- É? disse o Passarinho e bocejou levemente. Pois, a minha mãe dizia que quando chove é porque Deus está a chorar pelos nossos pecados.
- Que significa «pecado»? perguntou o menino.
- Más acções, disse o homem e ficou pensativo. Bocejou outra vez. Enfim, não é hora para falar sobre tambores e pecados. Mexe-te, vai mais perto da parede, vamos dormir juntos.
O homem gordo deitou-se na cama e abraçou o menino para os dois caberem melhor.
- Vamos dormir, repetiu.
O Joãozinho fechou os olhos. O corpo do Passarinho era quente e fofo. O Passarinho fechou os olhos também. O corpinho do Joãozinho era muito magro, como uma marioneta de madeira. O seu Tomás era muito magro também.
Na cama, os dois corpos abraçados estão a dormir. Os dois parecem ser muito bem-amados entre si, exactamente como são bem-amados entre si um pai ou uma mãe e o seu filho. Porque, se pudéssemos entrar no coração de cada um, veríamos que o Joãozinho está com a Florida e que o Passarinho está com o seu pequeno Tomás.
Numa casa pequena, não muito longe do lugar onde está o nosso amigo, o senhor Pedro Pinheiro, empregado laborioso de uma empresa têxtil durante vinte e nove anos, volta à sua cama, depois de ter visitado o quarto de banho, por causa do próstata. A Gertrudes, a sua mulher, está acordada também.
- Onde estavas? pergunta.
- Na casa de banho.
- Está a chover ainda?
- Não, ainda não. Foi uma tempestade e já terminou.
- Que horas são?
- As quatro e vinte. Volta a dormir. É cedo ainda.

                                 7. UM ACORDO CRIMINAL
                                       
O dia seguinte começou muito bem, com o sol brilhando, como se fosse um dia primaveral. O Joãozinho, infelizmente, não podia vê-lo, porque, como já dissemos, o quarto onde estava não tinha janelas. Mas isto não o impediu de acordar de bom humour. Tinha sonhado com a mãe. Estavam os dois no centro comercial. Ele brincava numa loja de brinquedos e de repente, veio a Florida e regalou-lhe um carro vermelho, todo para ele. Ficou tão feliz!
Quando acordou, claro, o bom humour sumiu. Estava ainda naquele lugar horrível, sozinho na cama, porque o Passarinho já se tinha levantado e tinha saído do quarto.
Deixaram-no dez minutos na casa de banho, que cheirava mal e onde também havia uma barata que se escondia atrás da sanita, e deram-lhe calças de ganga, que lhe ficavam compridos, e uma camisola de lã vermelha. Também lhe  deram um copo de leite – quente, desta vez –, e um pastel de nata. Depois, mandaram-no ao seu «quarto», fecharam à chave, e deixaram-no sozinho em casa, com a advertência de parte do Maestro de portar-se bem durante a sua ausência, ou vê-lo-ia como nunca mais, ninguém o tinha visto. Depois disto, e dado que não sabia como romper a fechadura, o pobre Joãozinho ficou sentado na cama, sem ter nada para fazer além de rezar. E enquanto ele rezava, os dois raptores foram à procura de clientes.
O Maestro conhecia um tipo que trabalhava como porteiro num orfanato. O homem chamava-se Nuno e além de trabalhar pelo orfanato trabalhava por conta própria também. Se, por exemplo, aparecesse um casal que queria adoptar um menino do orfanato, ele, sabendo bem que o processo normalmente levava mais tempo do que o casal estava preparado para aguentar, oferecia-se para ajudar a reduzir este tempo. O tempo que o casal «poupava» assim, dependia do dinheiro que estava disposto a pagar. Até houve alguns casos, onde o processo da adopção durou menos de um mês. Está certo que aqueles casais, além de ter muita sorte, tinham também muito dinheiro.
Mas houve também muitos casos, onde ninguém obteve o que queria: nem o Nuno ganhou dinheiro, nem o casal obteve um filho. E foi nestes casos onde o Maestro punha todas as suas esperanças. Porque, se houvesse um casal completamente decepcionado pelas vias legais de adopção, seria uma vítima ideal e compraria sem mais nem menos aquele menino antipático.
Passou um dia inteiro fora do orfanato, mas sem sorte alguma. Ninguém visitou o lugar naquele dia, e o Maestro ficou preocupado. Como diz o provérbio «tempo é dinheiro». Quanto antes conseguisse vender o menino, tanto melhor seria para ele. Mas o tempo passava sem resultados e isto não era bom sinal. Pensou nos prós e contras de cada opção que tinha enfrente e decidiu pedir a ajuda do Nuno. Claro, a ajuda do Nuno costava, mas ele estava preparado a pagar qualquer preço.
Tocou a campainha. O Nuno apareceu na porta, dizendo que já passava da hora das visitas, mas quando reparou no Maestro parou de falar e fez um gesto que somente eles dois sabiam como decifrar.
Meia hora mais tarde, os dois encontraram-se num parque perto do orfanato. Depois das primeiras palavras típicas de qualquer encontro, chegou a hora de falar de negócios. O Nuno não era tipo de perder tempo e o Maestro tinha pressa. Então, o Maestro pediu a Nuno para lhe dar alguns datos de casais que tinham passado pelo orfanato ultimamente sem conseguirem adoptar nenhum órfão. O Nuno pediu comissão, exactamente como esperava o Maestro.
- É pouco, disse o Nuno quando o Maestro lhe disse o que lhe oferecia.
- Pelo contrário, respondeu ele. É muito mais do que ganhas em seis meses pelo menos, ou me equivoco?
- O custo depende do risco. Sabes muito bem que se me apanharem vou perder o meu trabalho. Tu que vais perder? Absolutamente nada. Ou me equivoco eu?
- E que é o que queres? Diz-me lá.
- Vinte por cento.
- És um ladrão!
- Ladrão, eu? Deus me livre! Eu sou simplesmente um fornecedor de informação. O ladrão és tu, querido Manuel. Ou, preferes o título de raptor?
- Fala mais baixo, idiota! Nem a ti te serve que nos oiçam. E não digas o meu nome verdadeiro outra vez. Chamo-me Maestro, percebeste?
Olhou para um lado. Duas mulheres passavam falando em voz baixa. Os dois homens calaram e quando as duas mulheres se afastaram bastante, recomeçaram a falar.
- O preço não se negocia, disse o Nuno. Vinte por cento é o preço para os amigos. Se não te conhecesse, pedia pelo menos trinta.
- Não posso dar-te tanto, disse o Maestro. Se te dar vinte por cento, não vai ficar quase nada para mim.
- Achas que sou estúpido, ou quê?
- Não, claro que não. O que te digo é a pura verdade.
- Pois eu acho que na vida há muitas verdades. A minha verdade, por exemplo, diz que se estamos aqui a negociar o preço da informação que te posso dar é porque tu não podes estar com um cliente a negociar o preço de um menino. E sabes porque não podes negociar com o cliente? Simplesmente, porque não há cliente. E não há cliente, porque trabalhas sozinho, senão agora os teus sócios teriam encontrado pelo menos um cliente para ti.
Olhou directamente nos olhos do Maestro.
- Ou me equivoco? adicionou.
O Maestro não disse nada. Odiava não poder controlar a situação. Este Nuno era sempre muito difícil. O problema era que precisava dele.
- Bom, disse o Nuno, não acho que tenhamos mais para dizer. Sabes muito bem onde me podes encontrar. Adiós.
- Espera, canalha, está bem. Vinte.
Os dois homens deram as mãos.
- Às seis, disse o um.
- Às seis, repetiu o outro.
Desde o ramo mais alto de um choupo, ouviu-se o canto de um cotovia, selando o acordo.

                                  8. DESESPERADA
                                       
Vinte e quatro horas não passam facilmente, especialmente quando uma pessoa conta os minutos, como fez durante toda a noite a pobre Florida. A alba encontrou-a onde a deixámos nós, sentada na cadeira, com a camisa do Joãozinho nas mãos.
Os raios do sol caíram nas suas faces pálidas e obrigaram-na a fechar os seus olhos. Depois, levantou-se e foi ao telefone. Telefonou ao seu trabalho para dizer que não ia e voltou ao seu posto.
Foi ao meio-dia quando o seu rosto pareceu acordar. O sol já estava alto no céu e nas escolas do país as campainhas soavam, assinalando assim o fim das aulas. Miles de crianças de todas as idades saíam das aulas e voltavam para casa. Era hora de ir à Polícia outra vez. Penteou-se, pôs o seu sobretudo e saíu.
E ei-la, agora, que está a andar a grandes passos na rua. Muita gente, que também está na rua, faz o caminho dela mais difícil, porque de instante em instante está obrigada a parar para não embater com alguém. Mas todos os seus movimentos são mecânicos, fazem-se sem ela pensar neles. O olhar dela permanece vazio, ausente, porque o seu pensamento está longe. Cuidado!
Um carro que estava a correr por pouco não a atropela. Felizmente, o condutor pára a tempo. A Florida fica imóvel um bocadinho e depois continua o seu caminho. Uma mulher pergunta-lhe se está bem. Ela nem sequer a ouve. O posto da Polícia já está perto. Faltam só alguns metros. Agora faltam alguns passos. Já não falta nada. Está no escritório do comissário.
Fazer uma declaração de ausência não é uma coisa fácil, especialmente para uma mãe, porque é como se a mãe aceitasse a possibilidade de não voltar a ver o filho, e isto é muito doloroso. Mas é uma coisa que deve ser feito, para a Polícia poder começar as investigaçôes. Então, a Florida responde a todas as perguntas que lhe fazem.
Se o seu filho tem desaparecido outra vez? Não, claro que não. Como é? Loirinho, magrinho, alto até aqui (e a Florida leva a sua mão até à sua barriga) e com olhos azuis. O que levava no dia que desapareceu? Umas calças azuis escuras, uma camisa amarela de lã e um sobretudo castanho claro. E um cachecol às riscas. Onde foi que desapareceu? No centro comercial. Tem alguma fotografia dele? Sim, ei-la.
Um polícia toma nota de tudo o que a Florida diz. Aponta também a ropa que o Joãozinho levava, embora nós saibamos que esta informação não vai servir muito, já que o nosso amigo leva outra ropa agora. O comissário pergunta se a Florida não tem alguma outra fotografia mais recente. Porque nesta fotografia há uma criança pequena, possivelmente de dois anos e o Joãozinho tem seis. Infelizmente, não tem. Mas o seu filho não tem mudado, é igualzinho. Só os dentes de frente mudaram. Do resto é a mesma pessoa.
O comissário toma a fotografia. Não está muito optimista, mas não diz nada à Florida. Ele também tem filhos e não quer nem imaginar como seria perdê-los. Está bem, diz. Vão mantê-la informada, que não se preocupe. Agora já pode ir-se para os deixar trabalhar. Bom dia.

                                9. UM ANJO PARA A BEGONHA
                                    
A senhora Begonha Rodrigues estava a ver televisão. Estava a ver uma telenovela brasileira. Adorava as telenovelas, porque sempre terminavam bem. Pela mesma razão não gostava das notícias, porque quase sempre eram más. O seu marido, porém, odiava as telenovelas e adorava as notícias. E o futebol. Às vezes, não sabia porque tinham casado. Que tinham em comum, se nem sequer um programa da televisão podiam ver juntos?
Mas a verdade é que o Eugênio era um marido quase exemplar. Era honesto, trabalhador, não bebia, não jogava às cartas como o marido da infeliz da sua irmã, não a batia, como faziam outros maridos... Era um marido como poucos e seria um pai muito bom, também, se Deus quisesse dar-lhes um filho. Mas, já eram casados havia quase vinte anos e, infelizmente, não tinham filhos.
Tinham ido a muitos médicos, tinham feito inumeráveis análises, sem conseguirem nada. Depois de muitas decepções, pensaram em adoptar uma criança. Mas, nem isto conseguiram. No orfanato, onde foram para ver se poderiam adoptar um órfão, disseram-lhes que não satisfaziam as condições. Eram maiores de idade e o orfanato preferia dar as crianças a casais mais jovens. E o amor que eles tinham para dar? Conta-se o amor pela idade que se tem? Sentiam-se muito, disseram, mas havia regulamentos. Que se pode dizer? Algumas pessoas não têm nada de sorte.
O telefone soou justamente quando a Marina, a protagonista da telenovela, visitou o dom Rogério para lhe revelar que ela era a sua filha perdida. A Begonha, baixou o som da televisão e pegou a sua orelha no auscultador.
- Estou, disse mas isto não era exactamente a verdade, já que a Begonha estava na televisão. A Marina estava a chorar. O dom Rogério parecia muito surpreendido. Estou, disse outra vez.
Do outro lado da linha ouviu-se uma desconhecida voz masculina.
- Boa noite, disse a voz. Estou a falar com a senhora Begonha Rodrigues?
- Sim, senhor, sou eu. E o senhor, quem é?
- É verdade, continuou a voz, que a senhora, junto ao seu marido, visitou o  orfanato «O bom Jesús» no mês passado?
O coração da Begonha deu um salto. Na televisão, o dom Rogério abraçou a Marina.
- Sim, é verdade, sim senhor. Mas, com quem estou a falar, se faz favor?
- Doutor Alves, seu servidor.
- Doutor Alves? Não conheço nenhuma pessoa deste nome.
- Sim, é verdade. A senhora não me conhece.
- E que é que o senhor quer de mim?
- A senhora não conseguiu adoptar nenhum órfão do orfanato, não é verdade?
- Sim, é, mas o senhor que tem a ver com isto?
- Vou entrar directamente no tema, senhora Rodrigues. Já que a senhora não conseguiu adoptar um menino a causa do regulamento do orfanato, estaria interessada por uma adopção particular?
- Particular, como?
- Eu sou advogado. No outro dia recebi a visita de um senhor, que tem um filho de seis anos. O senhor é viuvo há dois anos e há alguns meses perdeu o seu trabalho também. Não tem meios económicos para poder oferecer ao seu filho o que devia e pensou em dar o seu filho para ser adoptado por uma família boa. Assim, o seu filho vai ter toda a atenção que merece. Então, o senhor pediu-me para eu encontrar um casal que fosse interessado. Dado que tenho um primo no orfanato, pedi-lhe os datos dos casais que passaram por ali sem conseguir adoptar um filho. A senhora e o seu marido parecem o casal ideal para a criança.
- Mas o meu marido e eu, já não somos jovens. Talvez não seja boa ideia...
- Mas que ideia tão absurda! Ao contrário, senhora Rodrigues, quem mais podia amar uma criança tanto como uma mulher que é madura e estável e tem experiência e sabiduria? Eu acho que a senhora é a mãe ideal para aquele menino. E, falando do menino, a senhora deve saber que se trata de um menino muito bom, loirinho como um anjo...
Loirinho, pensou a Begonha, como é o Eugênio! Que sorte! E, sim, era verdade: quem mais podia amar o menino como ela?
- E como podemos adoptá-lo? perguntou.
- Então, a senhora está interessada?
- Estou, sim.
- Neste caso não deve preocupar-se. Eu vou ocupar-me da parte burocrática da adopção. Vou falar com o pai, vou preparar os papeis, os senhores não deverão fazer quase nada. Somente...
- Somente, quê?
- Bom, o pai do menino foi obrigado a pedir dinheiro emprestado quando a sua mulher adoeceu, há quatro anos. Depois, ficou sozinho com o seu filho e precisou de mais dinheiro. Mais tarde, perdeu o trabalho e a sua situação piorou. Agora já deve muito dinheiro e não sabe como o devolver. É provável que vá à cadeia se não pagar o que deve.
- É muito? Quanto é?
Quanto? A Begonha pensou nas suas poupanças que quase não chegavam para pagar a soma.
- É muito, disse.
- Sim, o dinheiro emprestado não foi tanto, mas com os juros...
- Mas nós somos gente pobre. Não temos tanto dinheiro.
A Begonha sentiu que o anjo loiro estava a afastar-se dela.
- Vou ver o que posso fazer, disse o advogado. Entretanto, a senhora converse com o seu marido e pensem no assunto. Amanhã telefono-lhe outra vez. O pai tem pressa e há mais três casais que devo considerar. Boa noite.

                 10. UM COMISSÁRIO COM SENSIBILIDADE
                                   
O comissário Santos está no seu escritório. Durante a sua longa carreira viu muitos casos como o do Joãozinho. Pensa que provavelmente o menino fosse raptado. É muito pequeno para querer ir-se embora, e a mãe parece tão carinhosa...
Olha para a fotografia. Que pena que não haja outra, mais recente. Mas, vamos, tem de continuar a investigação com os meios que tem. Não é por coincidência que o consideram um comissário capaz.
- Vamos ao centro comercial, diz a um policia.
No centro comercial há muita gente. O comissário não gosta da multidão, mas tem de fazer o seu trabalho. Com a fotografia do menino nas mãos, entra nas lojas e pergunta às pessoas que trabalham lá se têm visto um menino loiro, que é tão alto (e levanta a mão ao nível do seu barrigão) e parece ao menino da fotografia, mas já tem mudado os dentes de frente, e no dia anterior, quando desapareceu, usava calças azuis escuras, camisa amarela, sobretudo castanho claro e um cachecol às riscas. As pessoas olham para a fotografia, procuram lembrar, mas dizem que não viram nenhuma criança assim. E o comissário continua o seu trabalho, perguntando e mostrando a fotografia.
Uma empregada diz que viu um menino loirinho que parecia ao menino da fotografia, mas, espere um momento, era mais alto e usava casaco aos quadrados. Não, não era ele.
Mas um guarda lembra-se do menino. Sim, viu-o há dois dias. Estava com uma mulher jovem e bonita, provavelmente com a sua mãe. Iam para o sector dos brinquedos. Mais tarde viu a mulher outra vez, mas ela estava sozinha. Não viu o menino? Não senhor, não o viu, sente muito. Há outras saídas no edifício? Sim, senhor, mas normalmente não estão abertas. Só em caso de emergência é que as saídas se abrem à gente. Podia alguém, que conhecesse onde ficavam aquelas saídas, ter saído através de uma delas? Não, senhor, porque há guardas perto de todas as saídas. Tem certeza que não viu o menino sair do centro? Sim, senhor, não o viu, mas isto não quer dizer que o menino não tenha saído dali. Claro que não. Se se lembrar de alguma coisa, por favor, eis o número do telefone pessoal do comissário. Pode telefonar a qualquer hora. Sim, senhor, que fique tranquilo. Bom dia.
O comissário fica decepcionado. O que vai dizer à pobre mãe? Não quer dar esperanças falsas, mas também não quer matá-la. Um comissário eficaz tem de ser psicólogo também.
Estamos ainda no início das investigações, diz à mãe. Pelo momento temos de analizar as informações que nos deram várias pessoas. Alguém o viu? pergunta ela. Sim, mas ainda é muito cedo para dizer qualquer coisa sobre o assunto. A senhora tem de ter paciência. 

                          11. ADOPÇÃO ENTRE BOCEJOS
                                 
A Begonha e o Eugênio foram ao escritório do doutor Alves. O escritório era muito pequeno e escuro. Havia só uma secretária, três cadeiras e uma pequena biblioteca com alguns livros. O doutor Alves recebeu-os cortesmente. Tinha um rabo de cabalo, coisa estranha para um advogado, mas estava bem-vestido e tinha o ar de uma pessoa que conhece a lei.
O doutor Alves convidou-os a se sentarem nas duas cadeiras que havia no escritório.
- Para dizer a verdade, estou muito comovido, disse. Porque em casos como este sinto que faço algo mais do que uma profissão. Sinto que o que estou a fazer é um serviço à sociedade. Porque com esta minha intervenção , um menino desgraciado vai ter um futuro.
Enxugou uma lágrima e continuou.
- Eu também venho de uma família muito pobre, e se não fosse pelo meu querido senhor Felizardo Castro Dos Reis, que se ocupou de mim como se eu fosse filho seu e que me ajudou financialmente, agora não sei onde estaria. Devo a minha vida inteira àquele homem, foi como um pai para mim.
Enxugou mais uma lágrima.
- Para ser sincero, disse o Eugênio, eu não estava muito a favor desta adopção, mas a minha querida mulher, insistiu tanto que tive de concordar. Porque, sabe, doutor, as adopções particulares parecem-me um bocadinho fora da lei...
O advogado pareceu ofender-se.
- Por favor, disse, se isto fosse ilegal, eu nunca me interviria. Sou uma pessoa séria. Consultei o código legislativo antes de dar a minha aprovação.
- Aliás, continuou o Eugênio, nós somos pobres, e por esta adopção vamos dar todas a nossas poupanças. Não vai ficar nada para o miudo. Não sei se isto é prudente...
- Mesmo assim, disse o doutor Alves, o menino estará muito melhor convosco. Com o seu pai não vai ter absolutamente nenhuma oportunidade na vida. Ele não ganha bastante nem sequer para se sustentar a ele próprio... Os senhores vão ter um posto ao lado do nosso Senhor, quando vir a hora de deixar este mundo, asseguro-vos.
Alguém bateu à porta.
- Já chegaram, disse o doutor Alves. Entrem, disse em voz alta.
A porta abriu e entrou um homem com um menino. O homem era gordo, calvo e tinha grandes bigodes. O menino era magro e loiro. Era verdade: era como um anjo! Mas não se parecia nada ao seu pai.
- Bom dia, senhor Mendes, disse o doutor Alves. Bem-vindos. Por aqui estão os senhores Rodrigues, que vão adoptar o menino.
- Muito prazer, disse o senhor Mendes, embora a palavra prazer não seja a palavra mais adequada para um pai que se vê obrigado a se separar da coisa mais importante na sua vida. Mas, a vida é difícil e...
- Não se preocupe, senhor Mendes, disse o advogado. Os senhores Rodrigues sabem muito bem a sua situação e não o julgam, asseguro-lhe.
Os senhores Rodrigues mexeram as suas cabeças, concordando com o advogado.
- Tenho aqui os papeis, disse o advogado. A única coisa que falta são as vossas assinaturas. Quanto ao dinheiro, os senhores Rodrigues vão dar o dinheiro que o senhor precisa para poder continuar a sua vida como membro honorável da sociedade, com a cabeça alta, não se preocupe.
- Quero a minha mãe, disse o menino.
- Coitadinho, disse o senhor Mendes e bocejou. Desde quando perdeu a mãe não a pode esquecer.
- Como te chamas, querido? perguntou a Begonha.
- Chamo-me João Pestana.
- Que nome tão bonito! disse a Begonha e bocejou ela também. Mas o teu apelido não é Mendes?
- Bom, disse o senhor Mendes. O seu nome inteiro é João Pestana Mendes De Olmos, mas ele prefere o apelido Pestana porque era o apelido da sua pobre mãe...
- A minha mãe está viva, disse o Joãozinho. Estes dois homens estão a mentir! Têm-me preso num quarto pequeno e não me deixam voltar à minha mãe, que estará tão triste.... Eu não quero outra mãe!
- Mas como? O senhor Rodrigues não é o teu pai? Meu Deus, quase não posso falar. Aaaaaa... Desculpe-me. Normalmente não costumo...... aaaaaaa.... bocejar. É a primeira vez. Aaaaaaaaa...... O que me aconteceu?
- Eu também, aaaaaaa.... Se pudesse deitar-me um bocadinho....
- Não se preocupem, senhores, aaaaaaaaa...., não é nada, só faltam as assinaturas.... aaaaaaaaaaaaaaa...... aqui.....
Os quatro adultos que estavam no escritório adormeceram. O Joãozinho estava livre.
Apressa-te, Joãozinho, pensou. Tens de afastar-te deste lugar, antes dos dois homens acordarem. Sem pensar mais, o menino abriu a porta e saíu correndo.

                              12. UMA NOTÍCIA INQUIETANTE
                                    
O senhor Filisberto era um homem que gostava de estar informado sobre a actualidade. Cada dia, quando ia ao seu café preferido, sentava-se na sua mesa e abria o seu jornal para se informar sobre o que acontecia no mundo. Depois, quando chegavam os seus amigos, para tomar café e para jogar a dominó, ele informava-os sobre as últimas notícias, comentando-as também.
Hoje também o senhor Filisberto está no seu posto, a ler o seu jornal. O jornal de hoje não é muito diferente do jornal de ontem. Decisões do governo, reacções de sindicatos, declarações de pessoas de política, artigos de economia, de ciência... Os amigos dele jogam ao seu lado, comentando a partida. O senhor Filisberto responde, às vezes, mas é, quase completamente, absorbido pelo que está a ler. «Aumentou-se a diferença entre ricos e pobres.» Que novidade! «Novos datos provam que o nível de vida baixou.» Não me digam! «Menos sono significa menos éxito em todos os aspectos da vida. Os segredos para um sono benéfico.», «A depressão. Uma doença do nosso tempo.»
- O que há no jornal, Filisberto? pergunta o senhor José. Alguma novidade?
- A mesma coisa, mais ou menos, responde ele. A depressão, diz, é uma doença do nosso tempo.
- Nenhuma novidade, então. Porque não deixas de ler? Joga connosco.
- Não é assim. As pessoas têm de se manterem informadas. Ainda não li o jornal inteiro. Pode haver alguma coisa interessante. Vocês continuem.
- Eu também lia o jornal todos os dias, diz o senhor Rodrigo, o outro amigo do senhor Filisberto. Chegou, porém, um dia, quando pensei que as notícias que são verdadeiramente importantes não estão nos jornais. A vida está fora dos jornais, não está dentro deles.
- A vida não está dentro dos livros também, mas gostas de ler livros, responde o senhor Filisberto.
- Sim, mas os livros não pretendem tomar o posto da verdade. Quando leio um livro, sei muito bem que se trata de ficção.
À duas mesas dos três homens, a Florida está a limpar. Terminou o seu trabalho na cozinha e está a limpar as mesas vazias do café. Tudo o que faz é feito mecanicamente. Os seus pensamentos viajam longe dela. Dois dias já passaram e não há nenhuma notícia do comissário. Talvez tenha de visitá-lo outra vez. Sim, hoje mesmo, quando terminar o seu trabalho, vai directamente à Polícia. Não pode esperar mais. Qualquer informação sobre o seu filho, ajuda-la-á a aguentar aquele martírio.
- Eis uma notícia diferente, diz o senhor Filisberto. «Bando criminal brasileiro com ligações no nosso país. Procuram-se pelo menos dez pessoas. A Polícia brasileira declarou que foi descoberto um perigoso bando criminal. Os criminais do bando cometeram muitos crimes durante a última década. Entre os vários crimes que cometeram, também foram implicados em casos de raptos infantis, especialmente no Brasil. Os casos não estão resolvidos ainda mas a Polícia receia que os meninos fossem raptados com a intenção de fornecer o mercado negro com órgãos humanos. O comissário Aristides Ramos, chefe das investigações, informou o nosso correspondente que a Polícia já está à procura das ligações portuguesas. Segundo o comissário, é provável que o bando tivesse procurado vítimas no nosso país também.» Em que mundo vivemos, meu Deus! Mas, o que aconteceu? A mulher desmaiou! Água, por favor!
- Senhora, está bem? Senhora, o que aconteceu?
- Florida, o que aconteceu, querida? Ouves-me? Florida!
- Eis a água! Por favor, façam espaço. Não vêem que a mulher desmaiou?
- Há algum médico?

                        13. CORRIDA PARA A SALVAÇÃO
                                    
A rua estava deserta. O Joãozinho olhou para os dois lados. À direita, não muito longe, havia um parque. À esquerda, havia casas com jardins. Não conhecia aquele lugar. A paisagem era muito diferente do seu bairro. Só o céu parecia ser o mesmo. Havia algumas nuvens no céu.
Escolheu o lado esquerdo e começou a correr. Aonde iria? Não sabia, mas tinha de ir longe daqueles homens tão maus. Bom, o Passarinho não era tão mau, mas o Maestro certamente era muito cruel. Correr! Quem podia imaginar que podia escapar tão facilmente? Correr! Quanto tempo tinha à sua disposição? Não sabia. Correr, então!
Se soubesse como, iria para casa, mas não sabia onde estava. À Polícia! Isto era boa ideia. Mas, onde havia um posto de Polícia? Correr!
Correu um pouco mais e depois parou. Quase não podia respirar. Com sopros rápidos e curtos procurava sentir melhor. Sentia que os seus pulmões estavam a queimar. Cada sopro provocava-lhe dor. Não podia correr mais, mas também não seria boa ideia ficar lá onde estava porque, certamente, os homens correriam atrás dele quando acordassem.
Não havia gente na rua. Como podia perguntar onde havia um posto de Polícia? Seria boa ideia bater à porta de uma casa desconhecida? E se as pessoas que lá viviam eram pessoas más? Tinha perdido toda confiança na natureza humana.
Mas se ficava lá, no meio da rua, mais cedo ou mais tarde os homens iam encontrá-lo. Tinha de tomar uma decisão, imediatamente.
Virou à direita e encontrou-se numa rua tranquila. Pelo menos não estava na rua principal e os homens precisariam de mais tempo para o encontrar. Sentiu-se mais calmo. A sua respiração melhorou um pouco.
E agora, como escolher a casa onde procuraria ajuda? A rua estava cheia de casas baixas e não muito ricas, mas tinham todas jardins. Era um bairro bonito. Olhou para atrás. Não havia ninguém.
Desde uma casa que estava em frente, uma criança pequena estava pegada no vidro de uma janela grande. Dali, o miudo olhava para ele e mexia a sua maõzinha, cumprimentando-o. Uma casa com uma criança não seria uma casa com pessoas más. O Joãozinho levantou a mão e cumprimentou também. O miudo pareceu muito contente e agora tocava o vidro com a sua mãozinha como se fosse um tambor.
Eis a casa da minha salvação, pensou o Joãozinho, mas justamente então ouviu vozes às suas espaldas. Havia gente naquela casa, gente maior. Olhou para o jardim. Era muito bem-cuidado. Quem amava as flores, não podia odiar as pessoas.
O Joãozinho olhou para a casa de em frente e cumprimentou outra vez o miudo da janela. Depois, entrou no jardim.

                          14. FURACÃO NO ESCRITÓRIO
                                    
O comissário Santos não era um homem difícil. Comia de tudo e não precisava de muito para estar contente. A sua mulher era uma mulher sortuda. Porém, cada dia a senhora Santos telefonava ao seu marido para lhe perguntar sobre o que queria que ela cozinhasse.
Hoje também, a senhora Santos telefonou ao seu marido. A comida do dia seria bacalhau ao bras, o prato favorito do comissário, mas mesmo assim ela tinha de perguntar se ele gostava da ideia. Sim, disse ele, era uma óptima ideia. A senhora Santos foi satisfeita pela resposta e informou-o também que iria à escola dos seus filhos para assistir na festa que davam para festejar antes das férias do Natal. Então, ia apagar o seu telemóvel durante uma hora. Avisava-o para não se preocupar em caso que lhe telefonasse. O comissário prometeu que não ia telefonar, nem ia preocupar-se durante aquela hora.
Gostaria muito de poder ir à festa dos seus filhos, mas tinha de trabalhar. Havia um menino que tinha desaparecido, e ele ainda não tinha conseguido nada. O que diria à mãe? Tinha-lhe prometido que a manteria informada, mas nem sequer ele tinha bastante informação.
E eis, agora, que um policia entra no escritório do comissário, dizendo que a mãe do menino desaparecido veio a pedir informações sobre as investigações. Pode passar, diz o comissário.
A mulher que entra parece ser uma outra mulher. É muito pálida, como se tivesse visto um fantasma, e parece ter envelhecido dez anos pelo menos. A Florida entra no escritório como um furacão.
- Onde está o meu filho? pergunta. O que aconteceu com ele? Porque não me diz?
- Calme-se, senhora, diz o comissário. Sente-se, por favor.
- Não é hora de me acalmar, responde ela. Porque não me diz a verdade?
- Senhora Pestana, aseguro-lhe que não temos nenhuma novidade sobre o seu filho...
- Por favor, diz a Florida e as lágrimas caem nas suas faces, o senhor pode dizer-me. Sou forte, vou aguentar. Diga-me: foi raptado pelo bando brasileiro?
- Qual bando brasileiro?
- O bando do que está a falar o jornal. É verdade? Raptaram o meu filho para lhe sacar ... os órgãos? A Polícia encontrou o seu corpinho?
A Florida não consegue continuar. Não pára de chorar.
- Calme-se, senhora, por favor, diz o comissário e oferece-lhe uma cadeia. Sente-se aqui. Traga um copo de água, por favor, diz ao policia que está na porta.
- Porque não me diz? pergunta a Florida.
O comissário pensa. O que pode dizer? Ele não sabe nada. As informações que tem são tão poucas que não podem servir para nada. Mas a mulher precisa de uma resposta. Tem de se comportar como psicólogo outra vez.
- Senhora, ainda é muito cedo para saber onde exactamente está o seu filho, mas vou dizer-lhe o que sabemos até agora.
A Florida olha para ele directamente nos olhos.
- Bom, continua o comissário, é muito provável que o seu filho foi raptado, como a senhora disse, mas (e acentua a palavra «mas»), mas, repito, os raptores parecem ser coincidenciais, quer dizer que não pertencem nos chamados «criminais organizados».
A Florida olha para ele sem pestanejar.
- Isto é um bom sinal, porque os criminais coincidenciais são mais fáceis de encontrar.
A Florida parece acalmar-se. O comissário respira e continua.
- A Polícia acha que o seu filho está vivo e está bem e eu, pessoalmente, espero que muito pronto o pequeno João estará consigo, senhora. Senhora, sinceramente, deixe à Polícia fazer o seu trabalho. Os nossos agentes trabalham dia e noite para chegarmos ao resultado desejado o mais cedo possível. Eu, pessoalmente, me ocupo do caso e não vou desistir antes de encontrar o seu filho. A senhora tem a minha palavra de honra.
Abre a porta, vem o policia com um copo de água.
- Por favor, diz o comissário, beba um pouco de água. A senhora está pálida.
A Florida toma o copo, e bebe um pouco.
- O meu filho é tudo para mim, diz. Sem ele, a minha vida não vale nada.
- Seja optimista, diz o comissário. A maioria dos casos deste tipo resolvem-se. Nada está perdido, ainda estamos no início das investigações. Confie em mim. Vou resolver o caso.
- Muito obrigada, senhor comissário. E desculpe-me por ter falado assim, mas é por causa da desesperação.
- Não faz mal, não se preocupe. É normal. E agora, se a senhora me permite, tenho de voltar ao trabalho.
- Pois, claro, vou-me embora. Eu também tenho de voltar ao meu trabalho. Desculpe-me outra vez. Bom dia.
- Bom dia.
- Se souber alguma coisa, por favor, avise-me.
- Não se preocupe.
O comissário fica sozinho no escritório. Que trabalho tão difícil! O policia entra outra vez no escritório e leva o copo de água que trouxe para a Florida.
- Traga-me os jornais de hoje, diz o comissário.
Qual é o bando brasileiro?

                             15. UM CUMPRIMENTO INESPERADO
                                    
- Miau, disse o Cravo, o gato ruivo da dona Amália e saltou sobre a cama dela.
A dona Amália abriu os olhos. Era cedo ainda, mas segundo o Cravo, era já hora de se levantar.
- Bom dia, Cravinho, disse a dona Amália. Como estás hoje?
- Miau, disse ele e continuou a dar voltas sobre a cama.
- É já hora de saires, não é? Bom, então. Levanto-me e abro-te a porta. Não te preocupes.
O Cravo saíu fora para dar a sua volta matinal, e a dona Amália foi à cozinha.
- Bom dia, Rigoleto, cumprimentou o seu canário amarelo, que respondeu, chilrando e dando saltos na sua gaiola. Tudo bem?
O Rigoleto começou uma canção alegre.
- Estás de bom humour hoje, não é, querido? Sim, tens razão. É um dia muito bonito. Frio, sim, mas parece que vai haver sol. E o sol para as pessoas da minha idade é pura benção.
O Rigoleto continuava a cantar.
- Que melodia tão bonita, meu Rigoleto! Nunca mais ouvi outro canário cantar como tu. És um fenómeno, sabes? Espera um bocadinho e vou dar-te água fresca. Depois, vou preparar um ovo para comeres e para te tornares mais forte. Sabes, todos os profissionais da canção comem ovos para manter a voz em boa condição. Que dizes? Pois, não exagero, não senhor. Só digo a verdade.
O Rigoleto deixou de saltar e foi beber água fresca. Cantar sempre provoca sede. A dona Amália escolheu um ovo do frigorífico e pô-lo numa caçarolinha.
- Mais tarde vou dar-te algumas vitaminas que comprei do senhor Perreira no outro dia. Disse-me que são muito boas. Vais ver.
A dona Amália vivia com os seu canário e o seu gato desde que o seu marido morreu. Não tinha filhos e não tinha familiares que vivessem perto dela. Os dois animais, então, que viviam com ela, eram como membros da sua família. Falava-lhes como se fossem humanos e pudessem conversar com ela. E muitos vão dizer que era exactamente assim, porque muitas vezes pareciam perceber o que ela estava a dizer.
Com o Cravo e o Rigoleto, então, a vida da dona Amália era uma vida simples e tranquila. Cada dia fazia as mesmas coisas, mais ou menos. Levantava-se muito cedo, abria a porta para o Cravo sair, mudava a água do Rigoleto e dava-lhe para comer, preparava um cafezinho com pouco açúcar e bebia-o no salão, perto da janela, e depois fazia os trabalhos de casa: limpava a casa, preparava a sua comida, lavava a ropa... O Cravo voltava ao meio-dia com muita fome, ela dava-lhe de comer na cozinha e comia ela também, depois descansavam ambos durante uma hora e pois saíam ao jardim, para ela cuidar as suas flores.
Porque a dona Amália, além do Cravo e do Rigoleto, tinha também muitas plantas e estava muito orgulhosa delas. Era verdade que todas as suas vizinhas olhavam para o seu jardim com inveja, porque elas nem podiam sonhar com um jardim tão bonito. Se houvesse um concurso entre os jardins do bairro, o seu jardim ganharia o maior prémio, sem dúvida alguma.
Certamente, isto não era coincidência, porque a dona Amália adorava as suas plantas e tratava-as como pessoas. Falava-lhes, punha música clássica no rádio para elas ouvirem, porque sabia que as plantas – especialmente as rosas – gostam da música clássica, regava-as frequentemente, dava-lhes adubo para se tornarem fortes, em geral dava-lhes toda a atenção que precisavam.
Quando, então, a dona Amália descansou, depois de ter feito todos os seus trabalhos e de ter comido junto ao Cravo, saíu ao jardim. Nesta época do ano, o jardim não estava na melhor condição possível, porque nesta época do ano, quer dizer no Inverno, as plantas dormem e descansam para poder florecer na Primavera. Mesmo assim, porém, a mulher incansável tinha de ver se tudo estava em ordem.
Saíu, então, ao jardim e começou a falar às suas plantas: Olá, senhor rosmarinho. Tudo bem? Permita-me dizer que hoje tem um aspecto óptimo. Ó, senhora azaleia, hoje a vejo um pouco deprimida. Tem frio? Sim, é verdade, ainda está frio, mas não se preocupe, a Primavera não tardará. Aguente um bocadinho mais, está bem? Que prazer, senhora rosa! Não vejo a hora para a Primavera chegar e para ver as suas flores. Quantos vai dar este ano? Sim, sim, fique tranquila, hoje também vai haver música como todos os dias. Gosta de Verdi? Ó, senhora amendoeira, bom dia! Já está a preparar-se para florecer? Tem sempre tanta pressa! Não se esquece, é muito cedo ainda. Senhor limoeiro, é sempre tão bonito, tem uma beleza que não conhece épocas. E as suas folhas são tão perfurmadas! Mas parece ter sede. Espere um momento e vou regà-lo, não se preocupe.
Assim falando, a dona Amália chegou à camélia. E esta camélia era um milagre da natureza. Era alta, robusta, com folhagem densa e brilhante e estava cheia de botões. Provavelmente a dona Amália teria de cortar alguns botões para fortalecer a planta. Sentia muito que tinha de provocar dor à pobre camélia, mas estava certa que a camélia entenderia. Aproximou-se da camélia e cumprimentou-a.
- Bom dia, senhora camélia, sei que não vai gostar, mas tenho de cortar alguns botões para o resto dos botões se tornarem mais fortes, disse. É para o bem da senhora, a senhora entende, não?
Podem, agora, imaginar a surpresa da dona Amália, quando a camélia lhe respondeu timidamente: Bom dia, senhora!

                          16. ENTRE COMISSÁRIOS
                                    
O comissário acabou de ler o jornal. Não gostou nada do que leu. Será possível? pensa. O pequeno desaparecido foi raptado pelo bando? Que mudança tão desagradável! E ele prometeu à mãe do pobre menino que ia resolver o caso! Tem de pedir informação sobre o bando. Como se chama o chefe das investigações?
- Telefonem ao comissário Ramos, diz. Quero falar com ele.
Ele e o comissário Ramos conhecem-se desde os anos da academia policial. Naquela época, ambos eram muito jovens e achavam que podiam salvar o mundo, como todos os jovens pensam. Com o tempo passar, ambos também deram conta que salvar o mundo é uma tarefa muito difícil mesmo.
O telefone soa duas vezes.
- Estou, diz o comissário.
- O comissário Ramos está na linha, ouve-se a voz de um policia.
- Muito bem, passe-mo. Bom dia Aristides, diz quando ouve a voz do seu amigo. Sou eu, Andrés. Tudo bem?
- Olá, Andrés, tudo bem, sim. Só que me encontras muito ocupado. Ouviste falar do bando brasileiro, não é?
- Pois sobre isto queria falar-te.
- Tens alguma informação para mim?
- Não, ao contrário, esperava que tu pudesses ajudar-me a mim.
- Ajudar-te? Como?
- Tenho um caso de rapto infantil. Não tenho muitas evidências e procuro eliminar as hipóteses, para chegar a um resultado. Este bando brasileiro está implicado em casos de raptos infantis?
- No Βrasil, sim. No nosso país, ainda não sabemos. Estamos à procura das ligações portuguesas, mas ainda não temos nenhum preso. As informações que temos são vagas e vêm todas da Polícia brasileira, que já tem preso mais de dez pessoas. Onde foi raptado o menino do que estás a falar?
- No maior centro comercial, há alguns dias.
- Sinto muito, mas infelizmente não posso ajudar-te. Porém, se ficar a saber alguma coisa aviso-te, não te preocupes.
- Obrigado, Aristides. Espero que resolvas o caso muito pronto.
- Isto eu também espero. Desculpa-me agora, mas tenho de voltar ao trabalho. Com licença.
- Sim, claro, com licença.
Então, o Aristides não pode ajuda-lo. Outra vez sem nada nas mãos. A imagem da pobre mãe vem outra vez na sua mente. Sente-se muito débil.
O telefone soa outra vez.
- Estou.
- Olá, Andrés, tudo bem?
- Quem é?
- Não me conheces, homem? Onde anda a tua mente? Sou eu, Roberto.
- Ah, sim, Roberto, olá, não te reconhecei, desculpa. Tenho um caso difícil e estava a pensar nele.
- Telefono-te para te lembrar que esta noite temos encontro no clube. É noite de futebol. Vamos vê-lo com cervejinhas e petiscos. Não te esqueças.
- Não sei, Roberto, este caso me preocupa muito...
- A vida de nós, policias, é cheia de casos, Andrés. O que vais fazer? Tens de continuar a viver para puderes continuar a resolver casos.
- Sim, já sei. Ma este caso é um caso especial...
- Não há casos especiais no nosso trabalho. Todos os casos têm a mesma raiz. As pessoas fazem coisas estúpidas e depois chamam a Polícia para corrigir os seus erros.
- Trata-se de um rapto. Não é coisa de uma pessoa ter errado.
- Claro que é. Uma mãe perdeu o filho porque não estava bastante atenta. Eis o erro.
- Não sejas tão cínico.
- Não sou cínico, só digo a verdade. Tu, simplesmente, és muito sentimental. Pensa-o melhor e vais ver que tenho razão. Todos os casos são resultados de erros, propositados ou não, não importa. O resultado é o mesmo. Eu, por exemplo, acabo de receber um telefonema de uma senhora que disse que ela e o seu marido foram robados por dois homens, que procuraram dar-lhes um menino órfão para adoptar, mas o menino disse que queria a sua mãe, e depois não sabem o que aconteceu, porque adormeceram e quando acordaram, não havia sinal nem dos homens, nem do menino, nem das poupanças do casal... E pergunto-te: porque é que aconteceu tudo isto? É um caso especial? Claro que não. Porque se o casal tivesse pensado um bocadinho no assunto, teria visto que havia algo errado em tudo isto. Mas não pensou. E agora a Polícia tem de encontrar os ladrões e o dinheiro perdido.
O Roberto parece estar zangado. Mas este caso... podia ter alguma relação com o bando brasileiro?
- Porque não informas o Aristides Ramos sobre o caso do casal? Tem um caso grande com um bando brasileiro que tem ligações no nosso país.
- Não acho que seja algo grande. Foram somente dois criminais que iam vender um menino a um casal. Esta história é tão velha como o Adão e a Eva. Obviamente, um dos homens tem um filho que usa como engodo para pescar vítimas. Ou, podiam também ter raptado o menino para o vender...
Uma luz acende-se na mente do comissário Santos.
- Podiam ter raptado o menino, disseste?
- Evidentemente...
- Quando vais interrogar o casal?
- Dentro de pouco vou ao lugar do crime, porque estás a perguntar?
- Porque quero ir contigo. O teu caso podia ter alguma relação com o meu caso.
- Pois, se tu achas... Está bem. Espero-te, mas não demores. Temos de terminar pronto, porque depois temos de preparar-nos para o jogo de futebol.
- Vou agora mesmo, diz o comissário e desliga.

                       17. A VELHA ADORMECIDA
                                    
O cumprimento da camélia deixou a dona Amália muito surpreendida. Nunca esperava ouvir uma flor falar. Mas, era verdade? A camélia tinha falado mesmo? Tinha de esclarecê-lo.
- Senhora camélia, disse olhando para a planta com muita atenção, desculpe, mas, pode repetir o que disse? Sou velha e não oiço muito bem.
Houve silêncio.
- Sou tão velha que imagino coisas, disse a dona Amália e virou para a sua casa. Mas, justamente quando virou, ouviu repentinamente um sussurro por entre os ramos e ouviu a mesma voz:
- Senhora, não se assuste.
Por pouco a dona Amália não desmaiou. Virou outra vez para a camélia e viu que os seus ramos estavam a mexer.
- Meu Deus, pensou, será que a camélia pode caminhar também?
Então, por entre os ramos da camélia, apareceu um menino.
- Sou eu, senhora, por favor não se assuste, disse o Joãozinho.
- Ó, menino, assustaste-me muito. O que estás a fazer aqui? Onde está a tua mãe? Não me parece ter-te visto outra vez no nosso bairro.
- Não sou de aqui, disse o Joãozinho. Dois homens trouxeram-me.
- Que homens? perguntou ela.
- Não os conheço. Têm nomes estranhos. Um se chama Maestro e o outro se chama Passarinho.
- Meu pequeno, não te estás a imaginar coisas? perguntou a dona Amália e bocejou. Estes nomes não parecem nomes verdadeiros. Onde está a tua mãe? Anda, vamos sentar aqui neste banquinho e contas-me tudo.
- Mas estou a dizer a verdade! O Maestro foi aquele que me levou. Estava eu com a minha mãe no centro comercial, e perdi a minha mãe, e apareceu ele, e disse-me que ia levar-me à minha mãe, mas levou-me num lugar que não conheço...
- Espera, filho, porque... aaaaaaaaaaaa........ dizes muitas coisas, e não posso seguir-te. Diz-me outra vez: onde foi que conheceste ........... aaaaaaaaa...... aquele homem?
- No centro comercial. E disse que ia levar-me à minha mãe, mas não me levou a ela, pôs-me num carro que conduzia o Passarinho, e levaram-me num lugar...
- Que conduzia o Passarinho... sim.... isto.... aaaaaaaaaaaaa..... parece muito estranho. Eu nunca ouvi de um passarinho conduzir um carro. Tens certeza, filho, que me estás a dizer a verdade? Aaaaaaaaaaa......... que bocejo, meu Deus!
- Sim, senhora, e procuraram dar-me a um casal desconhecido, mas eu escapei...
- Os bons meninos não escapam .... aaaaaaaaaaa.... E que aconteceu depois? Deixa-me fechar os olhos um bocadinho. Sinto-me tão ..... cansada...
- Senhora, não durma, por favor!
- Não estou a dormir.... aaaaaaa...... oiço-te perfeitamente. E como são estes homens?
- O Passarinho é gordo, calvo e com bigodes e o Maestro é alto, magro, usa óculos e tem o cabelo cumprido...
- A rabo de cavalo?....
- Sim, como a senhora sabe?
- ....aaaaaaaaa.... não o sei, mas.... há um homem de rabo de cavalo.... aaaaaaaaaaaaa... na entrada do ...aaaaaaaaaaa... jardim............
- Pensaste que podias escapar? perguntou o Maestro e agarrou-o pelo braço. Vem cá!
- Deixe-me, disse o Joãozinho mas antes de ter tempo para dizer mais, a mão do Maestro tinha-lhe tapado a boca.
- Ó Passarinho, abre a porta. Vou atar e amordaçar o menino, para evitar outros acidentes.
O Maestro pôs o menino dentro do carro e entrou ele também. A dona Amália não deu conta, porque já estava a dormir, sentada no banco. Mas, desde a casa de em frente, uma criança pequena estava a tocar o vidro de uma janela grande como se fosse um tambor, saudando assim um amigo novo que acabava de desaparecer num carro azul escuro.

                          18. PRISIONEIRO OUTRA VEZ
                                    
O Maestro estava muito zangado. Dava voltas e mexia as suas mãos continuamente. Desde o quarto contíguo, o Joãozinho não podia vê-lo mas, com a orelha pegada na porta, procurava ouvir.
- Menos mal que o apanhei, dizia o Maestro. Podes imaginar o que aconteceria se o menino conseguisse escapar?
- Mas nós conseguimos levar o dinheiro do casal, não é?
- Sim, mas imagina se o menino tivesse ido à Polícia, estúpido! Podiam ter-nos encontrado antes de escapar com o dinheiro, percebeste?
- Porque te zangas, homem? Encontraste o menino, não o encontraste?
- Sim, está bem, tens razão, disse o Maestro, como se tivesse acordado de repente. Agora temos de ver o que vamos fazer com o rapaz.
- Sobre isto não é difícil pensar, disse o Passarinho. Vamos deixá-lo num lugar apartado e vamos desaparecer.
O Joãozinho sentiu-se aliviado. Iam deixá-lo livre. Era questão de tempo. Tinha simplesmente de ter paciência.
- És mesmo estúpido, disse o Maestro. Porque não pensas como podíamos ganhar mais dinheiro?
- Quem quer muito, perde tudo, dizia a minha mãe.
- Pois a minha mãe não dizia coisas estúpidas.
- Muito bem, então. Se tu és tão esperto, diz-me como podemos ganhar mais dinheiro. Vais vendê-lo outra vez?
O sangue do Joãozinho gelou.
- Isto não é sábio, disse o Maestro. Temos de fazer algo um bocadinho diferente. Vamos vendê-lo à sua própria mãe.
- Vendê-lo à própria mãe? Que queres dizer com isto?
- Vamos telefonar-lhe e pedir-lhe resgate.
- Achas que tem dinheiro para dar?
- Não custa nada perguntar.
- Sim, mas não pensas que assim vamos arriscar ser localizados pela Polícia?
- Vamos pedir-lhe para não implicar a Polícia. Ela não vai arriscar a vida do seu filho, não é?
- Espero que tenhas razão.
- Claro que tenho. Ó tu, ranhoso, qual é o número do telefone da tua mãe? E qual é o seu nome?

                     19. À PROCURA DE TESTEMUNHAS
                                      
O comissário Santos está numa rua central. Desde a manhã percorreu-a toda, sem encontrar nenhum sinal do Joãozinho. Está cansado mas não desiste. Uma voz dentro dele diz-lhe que as respostas que procura estão lá perto.
Anda na rua com grandes passos e o seu olhar vai da uma parte da rua à outra, procurando imaginar onde podia ter ido o menino, quando escapou dos seus raptores. No parque não o viu ninguém. Na rua, também. Mas, o que aconteceu, sumiu?
O casal que foi interrogado ontem não deu muitas pistas. Só pôde dizer onde estava o escritório do advogado-embusteiro. Os policias encontraram bastantes impressões digitais para procurarem os raptores, mas, até isso acontecer ele não pode perder tempo. Deve agir agora já.
Se não foi ao parque, onde podia ter ido? pergunta-se. Provavelmente não ficou na rua central. Provavelmente tratou de escapar através de uma rua lateral. Um menino muito esperto. Oxalá tenha conseguido escapar.
Vira à direita. Uma rua tranquila. Há menos tráfico e menos gente nesta rua, mas mesmo por isto parece mais tranquilizadora, especialmente a um menino de seis anos. Podia ter solicitado refúgio numa destas casas pobres?
Uma depois da outra, as casas gradualmente o decepcionam. Também nesta rua, ninguém o viu. Podia ter ido a uma outra rua lateral, obviamente. Está bem, pensa. Uma ou duas casas mais, e depois vou para uma outra rua.
Entra num jardim bonito. Uma senhora está a falar com uma planta. Que tipo de testemunha seria uma mulher que fala com as plantas? Mesmo assim, tem de provar.
- Bom dia, senhora.
- Ó meu Deus, que susto! diz ela. Estava distraída. O que é que o senhor quer?
- Desculpe, senhora, não queria assustá-la. Sou comissário Santos, e queria fazer-lhe algumas perguntas sobre um menino.
- Estou à sua disposição, comissário.
- A senhora viu este menino? Temos informação que ontem, ao meio-dia, estava no seu bairro.
- Que coincidência, senhor comissário! Ontem, ao meio-dia, adormeci um bocadinho e sonhei com este menino.
- Sonhou com o menino? Como?
- Deve ter acontecido quando estava a falar com a camélia...
O comissário pensa que a senhora não anda bem na cabeça, mas mexe a sua cabeça em sinal de aprovação.
- Continue, diz.
- Estava a falar com a camélia, quando ela me respondeu...
- Respondeu-lhe a camélia?
- Sim, senhor, mas, como já lhe disse, estava a sonhar. A camélia respondeu-me, mas resultou que não era a camélia que me respondeu, era este menino da fotografia.
Podia não ter sonhado com o menino? pensa o comissário. Podia tê-lo visto de verdade?
- Disse-lhe alguma coisa?
- Quem?
- Pois, o menino, claro.
- Não me lembro claramente, mas acho que me disse um conto.
- Um conto?
- Sim. Era sobre um maestro e um passarinho que conduzia um carro, acho. Não me lembro de nada mais.
O comissário pensa que a senhora está louca. Tanto tempo perdido. Tem de ir-se embora.
- Bom, senhora, muito obrigado pela sua ajuda.
- Ah, sim, e depois apareceu um homem de rabo de cavalo...
- Está bem, senhora, obrigado. Bom dia.

                             20. UM TESTEMUNHA FUNDAMENTAL
                                 
O pequeno Carlos acabou a sua comida e agora está no salão, a brincar com o seu boneco favorito, um ursinho fofo, de peliça branca, que se chama Nevinho. O ursinho é o seu melhor amigo. A ele confia tudo. É uma pena que o ursinho não possa falar, mas mesmo assim, o Carlos percebe muito bem o que o ursinho diria se pudesse falar.
Hoje o dia parece muito bonito. Que te parece um posto ao lado da janela, Nevinho? Claro que gostas da ideia. Vamos, então.
Com alguma dificuldade, já que há somente três dias que conseguiu andar, o pequeno Carlos levanta-se e vai para a janela, arrastando o Nevinho com ele. Aqui fica-se bom, não é? Que dia tão bonito!
Ouve-se a campainha. Alguém está na porta. Quem será?
- Bom dia, senhora, diz uma voz masculina. Eu sou comissário Santos.
- Bom dia, comissário. Aconteceu alguma coisa? pergunta a mãe do Carlos.
- Não, não se preocupe, só queria fazer-lhe algumas perguntas.
O pequeno Carlos vai gatinhando para a sua mãe.
- Passe, diz a mãe ao comissário.
Sentam-se no salão. O comissário parece enorme. Que barrigão! Parece um balão, não é assim, Nevinho?
- A senhora viu por acaso esta criança? É maior do que nesta fotografia e tem mudado os dentes da frente.
- É-dé-dé, diz o Carlos. Deixem-me ver.
- Não, não o tenho visto, diz a mãe.
- A senhora tem certeza? Deve estar aqui perto. O menino foi raptado há alguns dias e ontem foi visto neste bairro.
- Eu-eu. Da-da-da. Eu sei, diz o Carlos. Vi-o. Po.
- O que há, tesouro? pergunta a mãe. Fica tranquilo um bocadinho e a mãezinha vai levar-te ao parque, está bem?
- Ó-ó-ó.
- Pelo menos notou algum homem desconhecido neste bairro?
- Á-á-ó. Do-do. Be-be-be. O homem era alto, moreno e muito magro e tinha um rabo de cavalo, porque tinha o cabelo cumprido. Usava óculos redondos e tinha um anel no dedo pequeno. Eu vi. I-i-i. Da-da-da. Bo.
- Sim, querido, diz a mãe, vamos ao parque. Sim, mas agora deixa a mãezinha falar com o senhor comissário, está bem?
- Ba-ba-ba. Foi lá fora onde o vi. Na rua. Ua.
O Carlos levanta a mãozinha para mostrar onde estava o homem.
- Sim, querido, vamos lá fora, diz a mãe. Mas espera um bocadinho.
- I-i. Du-du-du. Depois veio um outro homem num velho carro azul escuro, e levou o homem do rabo de cavalo e o menino. Justamente cá fora. Cá-cá.
- Emergência, querido? Queres ir à casa de banho, meu amor? pergunta a mãe. Não te preocupes, vamos agora mesmo.
- Se a senhora ver o menino, por favor avise a Polícia, diz o comissário e levanta-se do sofá. Eis o meu cartão de visita. Pode telefonar directamente a mim.
- Desapareceram de seguida. Ba-ba-bu.
- Pois claro.
- Bom dia, senhora.
- Ó-ó. Da-da-da.
- Bom dia a ti também, diz o comissário ao pequeno Carlos.
A porta fecha. O comissário vai-se embora e a mãe vai para a casa de banho, levando o Carlos pela mãozinha.
- Vamos à casa de banho, então, diz, e depois vamos vestir-nos para ir ao parque. O meu Carlinho está muito falador hoje, não é? O que aconteceu? Gostaste do senhor comissário?
- Ba, diz o Carlos. Deixa-estar.
O menino não está nada satisfeito. Hoje falou tanto como não tinha falado em toda a sua vida, mas ninguém reparou. Quando for grande, pensa, tudo será diferente. Porque, obviamente, ninguém repara em nós, os pequenos, não é assim, Nevinho? Mas quando for grande, todos vão ver. Da-da-du.

                                   21. TELEFONEMA DE NATAL
                                   
Amanhã é dia do Natal. Dia festivo para todos, que o festejam com a família. Isto é o que pensa a Florida, e está completamente desesperada.
Tantos dias passaram e ainda não soube nada do seu filho. A única coisa que o comissário Santos lhe disse foi que, como parece, o Joãozinho não foi raptado pelo bando brasileiro. Menos mal, mas mesmo assim, a verdade é que ninguém sabe em que tipo de perigo está exactamente o seu filhinho.
Na cama do Joãozinho está um pacote. É o presente que ela comprou para ele. É um carro pequeno vermelho. Custou-lhe um bocadinho caro, mas nada pode ser mais caro de um filho, não é?
A Florida pensa que seria boa ideia ir à igreja e rezar ao menino Jesús para proteger o seu menino e para o devolver nos seus braços muito pronto. Pensa também que seria boa ideia fazer um voto. Pode prometer que não vai cortar o seu cabelo até o Joãozinho voltar. Dantes, as mulheres faziam votos deste tipo, quando os seus maridos partiam longe, ou quando iam à guerra, ou quando estavam muito doentes.
Abre o roupeiro, onde está o seu único vestido. Soa o telefone. O coração da Florida dá um salto. Quem será?
Anda correndo ao telefone e com mão tremente levanta o auscultador.
- Estou, diz com uma voz que apenas se ouve.
- A senhora Pestana? pergunta uma desconhecida voz masculina.
A Florida senta-se na cadeira que está ao lado do telefone.
- Sim, sou eu, diz e sente o seu coração galopando dentro do seu peito.
- Temos o seu filho, senhora Pestana, e se a senhora quizer vê-lo outra vez, tem de pagar...
- Não percebo, balbucia. Quem é?
- Oiça, continua a voz, porque não vou repetir. Se a senhora quer ver o seu filho outra vez, tem de pagar dinheiro.
De repente, a Florida dá conta do que se trata.
- O meu filho, diz, como está? Onde está?
Grandes lágrimas começam a correr nas suas faces.
- Pelo momento, o seu filho está bem, não se preocupe.
- Quero falar com ele. Quero falar com o meu filho!
- Mãe, ouve-se a voz do Joãozinho.
- Meu amor! Como estás? Onde estás? Fizeram-te algo mau?
- Como a senhora vê, não estou a mentir, ouve-se outra vez a voz do homem desconhecido.
- Quero falar com o meu filho, diz outra vez a Florida. Quero ouvir ele mesmo dizer que está bem.
- Mãe, ouve-se o Joãozinho outra vez.
- Filhinho, como estás, meu amor? Estás bem?
- Leva-me de aqui, mãezinha, leva-me de aqui!
- Sim, filhinho, sim, tem um pouco de paciência. Pronto estaremos juntos, não fiques triste...
- Mãezinha, procurei escapar, mas não sabia...
- Então, ouve-se a voz do homem, a senhora viu que o seu filho está vivo. Agora, se quizer ver o seu filho, tem de seguir as nossas instruções.
- Sim, vou fazer tudo o que me disserem, por favor não lhe façam mal!
- Tudo dependerá de si.
- O que devo fazer?
- Primeiro, não pode avisar a Polícia. Se avisar a Polícia, sinto muito mas teremos de matar o menino.
- Matar? Não, não, por favor, não lhe façam mal! É apenas um menino. Não vou chamar a Polícia, prometo-o, não se preocupe.
- Segundo, a senhora deve deixar o dinheiro num lugar que nós vamos decidir e deve andar ao lugar sozinha, sem companhia de ninguém.
- Sim, claro, vou fazer como me diz. E onde tenho de ir?
- Já é cedo para a senhora saber. Vamos avisá-la um pouco antes do nosso encontro. Depois, quando tivermos o dinheiro, a senhora vai ter o seu filho.
- E como posso saber eu que vão fazer o que me diz?
- Não pode saber, diz a voz. Mas se a senhora não fizer o que dizemos, pode ter certeza que não vai voltar a ver o seu filho...
A Florida sente tanto medo que, até agora, nunca sentiu na sua vida.
- Está bem, diz. E quanto é que os senhores querem para deixar o meu filho?
Ouviu bem?
- Mas é muito, diz e pensa que muito pronto vai desmaiar. Eu não tenho tanto dinheiro.
- Sim, todos dizem que não têm, mas um pouco depois todos encontram. A senhora tem certeza que quer ver o seu filho? Porque podemos deixar a situação como está: nós sem dinheiro e a senhora sem filho...
- Por favor...
- Não somos más pessoas, senhora. Digamos que esta não é a sua resposta final. Vou telefonar outra vez esta noite para saber qual é a sua decisão. E, lembre-se: nada de Polícia. Com licença.
A Florida fica com o auscultador na mão. O que tem de fazer agora?

                                   22. CLIENTES NOVOS
                                    
O Joãozinho estava outra vez no quarto sem janelas. Não sentia nem bem nem mal. Claro, estava contente porque, pelo menos, tinha ouvido a voz da sua querida mãe, mas, por outro lado, estava preocupado pelo resgate. Onde ia encontrar dinheiro a sua mãe, para os dois homens o deixarem livre? Ele sabia muito bem que a Florida não tinha dinheiro. Isto significava que não o deixariam nunca? O nosso amigo sentiu-se como se tivesse caído num poço profundo.
No quarto contíguo, o Maestro estava com a cabeça apoiada na sua mão. Isto significava que o Maestro estava a pensar, e quando ele pensava, nunca pensava em coisas boas.
- Ó, Maestro, disse o Passarinho, já é hora de comer.
- Tu não podes pensar em outra coisa?
- Desculpa lá, mas quando tenho fome não posso pensar em nada mais. É a lei da natureza.
- É a lei da natureza que também te faz dizer bobagens?
- Não digo bobagens, não senhor. É hora de comer e isto é um facto. Ao contrário, tu pareces muito preocupado sem razão alguma.
- Achas?
- Pois acho. Não há nada para me preocupar, não é? Já temos o dinheiro do casal, e muito pronto vamos ter o dinheiro da mãe também. Então, muito pronto teremos montes de dinheiro e cada um vai onde quizer.
- Quantos anos tens?
- Porquê?
- Porque pensas como se fosses um menino de dez anos!
- Mas, porquê?
- Pensaste o que vai acontecer se a mãe realmente não tem dinheiro, como me disse? Vamos correr o risco de ser apanhados pela Polícia, sem ganhar absolutamente nada.
- Mas tu disseste-lhe para não avisar a Polícia...
- E como tens certeza que ela vai fazer o que eu lhe disse?
- Pois, quer voltar a ver o seu filho, penso...
- Sim, claro, mas nunca se sabe. Nós temos de estar preparados para tudo. Aliás, se não tem dinheiro, não podemos ganhar nada. Então, temos de pensar num plano alternativo.
- Eu, como dizes, não sirvo para nada...
- E por isto eu já pensei no plano alternativo que precisamos. Vamos vender o menino a um outro cliente.
- Já encontraste?
- Ainda não, mas já fiz alguns contactos...
- Quem é?
- Ouviste alguma vez falar do Talho?
- Do cirurgião?
- Do cirurgião, sim.
- Pois não somente ouvi falar dele mas conheci-o na prisão. Ele estava lá por não ter pago impostos durante três anos, se bem me lembro. Eu estava lá por ter robado um carro. Ele ficou lá um ano e meio, eu fiquei três anos. Obviamente, o advogado dele era melhor do que o meu.
- Obviamente. Mas não penses que não teve consequências. Conseguiu sair da prisão cedo, sim, mas foi despedido pelo hospital onde trabalhava, e agora não o aceitam em nenhum hospital do país.
- Não me digas que ele é o cliente.
- Claro que não. Encontrei-o por acaso ontem e falámos um bocadinho. Ele vai trazer-nos em contacto com o cliente.
- Quem é o cliente, então?
- É estrangeiro, isto é a única coisa que sei dele.
- E que vai fazer com o menino?
- Queres saber mesmo?
O Passarinho não disse nada, mas fez sinal com a cabeça para o Maestro continuar. Ele olhou para a porta do quarto onde estava o Joãozinho, depois voltou para o Passarinho.
- Bom, disse. Vou dizer-te, mas tu não sabes nada, ouviste? O Talho não sabe que não trabalho sozinho.
- Não te preocupes. Vou manter a minha boca calada.
- No mundo há muitas pessoas que morrem, mas que podiam ser salvas se pudessem receber uma transplantação. Mas, para haver uma transplantação, há de haver órgãos disponíveis. E, sabes onde se encontram os órgãos disponíveis? Em pessoas que morrem nos hospitais. Mas as pessoas que morrem nos hospitais não chegam para todas as pessoas que precisam transplantações. Aliás, há pessoas muito ricas que pagariam muito dinheiro para encontrar um órgão disponível e que têm o dinheiro para pagar...
- O que estás a dizer? disse o Passarinho. Estás a falar do mercado negro de órgãos humanos? Vais vender o menino para lhe arrancarem os órgãos? Não posso acreditar nos meus próprios ouvidos!
- Tu querias saber...
- Não, disse o Passarinho, desculpa lá, isto não o vou permitir! Sou muitas coisas: ladrão, impostor, raptor, sim, mas assassino, não!
- Não sejas dramático! Nós somente vamos vendê-lo...
- Às pessoas que vão matá-lo! Não vou deixar-te vender o menino àquelas pessoas. Se precisar, eu mesmo vou a Polícia!
- Escuta aqui, imbecil, se não quizeres participar, a porta está aberta para ti. Posso trabalhar sozinho, não te preocupes. Mas...
Houve silêncio no quarto.
- Mas, continuou o Maestro, se avisares a Polícia, fingindo que és um cidadão honesto, podes ter a certeza que o teu pequeno Tomás...
O Passarinho sentiu como se uma pedra enorme lhe apertasse o coração.
- Digamos que o teu pequeno Tomás vai ficar pequeno para sempre, disse o Maestro. Estamos? 

                                 23. O DILEMA DE UMA MÃE 
                                        
A Florida sente-se mais sozinha do que jamais se sentiu. Agora seria óptima ideia se ela também tivesse uma mãe para perguntar: ó, mãe, o que é que devo fazer para salvar o meu filho? Mas, como já dissemos no início da nossa história, a Florida pertence àquelas pessoas pouco sortudas, que desde muito cedo têm de caminhar na vida com os seus próprios pés, sem apoio de ninguém.
As paredes calam-se. A janela não sente a sua dor. Os livros que estão na mesa não sabem dizer-lhe nada.
Quanto difícil é decidir! A coisa correcta seria sem dúvida chamar a Polícia. Mas, por outro lado, aquele homem disse que se ela chamasse a Polícia, iam matar o seu filho! Meu Deus, não deixes que me matem o meu Joãozinho, pensa.
De repente se lembra das exigências dos raptores. Onde vai encontrar o dinheiro que lhe pediram? Nem sequer ter poupanças. Tudo o que ganha do seu trabalho no café não basta para ter uma vida decente, muito menos para poupar. Aliás, as pessoas que conhece são também gente pobre. Mas, mesmo se não fossem pobres, quem lhe emprestaria dinheiro?
Ninguém, esta é a resposta certa. Ninguém lhe prestaria dinheiro. A Florida inocente já cresceu, não acredita nas fábulas e sabe perfeitamente de onde vêm os bebés. Sabe também que a sociedade é muito cruel, especialmente para com os pobres. Não há bondade no mundo, não senhor, e também não há justiça, porque se houvesse justiça, ela, que não tem nada mais do que o seu filho, não estaria nesta situação tão difícil e tão triste.
O que vai acontecer, então? Porque, se não encontrar o dinheiro que os raptores querem... é muito provável... é muito provável que... (não quer nem sequer pensar nisto) ... que ... (que o matem, porquê não o diz?)....
Não tem tempo. Os segundos voam, os minutos correm, as horas passam rapidamente. Muito pronto serão as seis... e depois as sete... e depois...
Soa o telefone. Mecanicamente, a Florida levanta o auscultador.
- Boa tarde, senhora Pestana, ouve-se uma voz que lhe parece conhecida. Como está?
- Bem, responde ela, simplesmente por costume. Quem é?
- Desculpe, claro, não me presentei. Sou o comissário Santos.
- Alguma novedade, comissário? pergunta a Florida, pensando que pudesse ter acontecido algum milagre.
- Não, sinto muito, não tenho nenhuma novedade. Sabemos, claro, os nomes das pessoas que raptaram o seu filho...
- Sabem? Quem são?
- Sinto muito, mas são pessoas com um passado criminal. Um deles chama-se Manuel Matias e no passado foi condenado por contrabando, e o outro chama-se Elias Carvalho e é um ladrão de carros, que foi preso pelo menos duas vezes.
- Isto é boa notícia, não é? pergunta a Florida. Porque, se os senhores conhecem quem são, é mais fácil encontrá-los.
- Pois, o problema é que não podemos encontrá-los, pelo menos ainda. Não sabemos onde estão. Mas não se preocupe, espero muito pronto estar na posição agradável de poder devolver o seu filho à si.
A Florida está indecisa. Se avisar a Polícia, matam o Joãozinho, pensa. Se não encontrar o dinheiro pedido, também o matam. Falo ou não falo?
- Senhora, está bem? ouve-se a voz do comissário Santos. Aconteceu-lhe alguma coisa?
- Não, não aconteceu nada, estou bem, obrigada.
- Não queria incomodar a senhora, mas telefonei para lhe dar os meus desejos para o Natal. Oxalá o ano novo, que está a aproximar, a encontre com o seu filho nos braços. Eu, por minha parte, vou fazer tudo o que puder.
- Muito obrigada. Que Deus oiça.
- A minha esposa também lhe manda os seus melhores desejos. Reza por si e pelo seu filho todos os dias.
- Diga-lhe que lhe agradeço a bondade.
- Estive a pensar, diz o comissário, que é muito provável, já que o seu filho não foi raptado pelo bando brasileiro, que a senhora receba algum telefonema dos raptores.
Os cabelos da Florida movem-se no seu crânio.
- Se, continua o comissário, se os raptores vierem em contacto consigo, por favor avise-me.
Se avisar a Polícia, pensa a Florida, matam-no.

                                 24. O SENHOR DESCONHECIDO
                                          
O Cristovão Colombo, desculpem, o Cristovão Calumba queria dizer, estava a discutir com os seus amigos. Pouco antes, estavam todos a jogar a futebol, aproveitando do dia soalheiro. E, de repente, o guarda-redes da sua equipa decidiu ir-se embora. Naquela altura, a equipa do Cristovão estava a vencer com dois golos que ele próprio tinha feito.
O Cristovão zangou-se, porque ele era o chefe e, portanto, ele devia decidir.
- Na próxima vez, disse ao Zé, o guarda-redes, procura outra equipa. Na minha equipa não cabes.
- Não digas isto, disse o Zé, que sentiu vontade de chorar, mas procurou parecer forte. Eu sempre jogo na tua equipa...
- Já falei, disse o Cristovão levantando a mão, para os outros perceberem que ele era o chefe, meu Deus, que falta de respeito!
A discussão continuou e, finalmente decidiram que a partida tinha terminado e que todos voltavam para casa. A fim de contas, era Natal e as suas mães espera-los-iam para comerem com a família. O Cristovão ficou de mal humor. Era chefe, ou não era? Não contava a sua opinião? «Vou despedi-los todos da minha equipa», pensou. Mas antes disso, tinha de procurar novos jogadores. Que vida tão difícil, a vida de um chefe!
 O que o Cristovão nem imaginava era que havia coisas mais difíceis na vida. E uma coisa muito difícil mesmo era a coisa que tinha acontecido ao Joãozinho, que estava ainda encerrado no quarto sem janelas, sem saber o que ia acontecer-lhe.
Desde o dia anterior estava muito preocupado com a sua mãe. Como tinha ouvido através da porta, a Florida tinha comunicado com o Maestro e tinha-lhe pedido para lhe dar um prazo de dois dias, para ela conseguir encontrar o dinheiro. O que teria na sua mente? Ia mesmo encontrar o dinheiro? Onde?
Acontecesse o que acontecesse, porém, ele não estava muito optimista. A discussão do dia anterior entre os dois homens, embora ele não tivesse conseguido perceber (era algo sobre órgãos, mas não sabia o quê), não o deixava relaxar. Algo mau estava à sua espera. Se não, porque naquela mesma manhã os dois homens não tinham trocado nem uma palavra entre eles? 
 O Joãozinho tinha razão. Desde o dia anterior, o Passarinho não falava ao Maestro, e procurava ficar sozinho. O Maestro, por outra parte, não se preocupava com isto, porque estava preocupado com o seu plano alternativo. Desde a manhã, estava no telefone, a falar em voz baixa e a fumar um cigarro depois do outro. O Joãozinho não podia vê-lo, mas podia cheirar o fumo que entrava por baixo da porta.
Era quase a hora da comida, quando a porta do quarto abriu e o Passarinho entrou.
- Fica tranquilo, disse ao Joãozinho. Vou atar-te e vou fechar-te a boca também. O Maestro não quer que fales com o senhor X.
- Quem é o senhor X?
- Não sei, este é o seu nome, disse o Passarinho e atou as mãos do Joãozinho com um fio forte.
- Este é...
Mais não pôde dizer mais, porque o Passarinho já lhe tinha tapado a boca com um trapo.
- Agora vem, disse o Passarinho e conduziu-o no quarto contíguo, onde, além do Maestro, havia também um homem desconhecido.
O Passarinho saíu do quarto e o Joãozinho ficou a observar o senhor X. Era alto, magro, e loiro. Os seus olhos não se viam, porque usava óculos de sol. Usava também um fato escuro, que parecia de boa qualidade e um cachecol branco. Os seus sapatos brilhavam.
O Joãozinho não se impressionou nada, claro, porque já tinha aprendido que a boa roupa não é sinal de uma pessoa boa, e que, muitas vezes, aquilo que parece muito bom é na realidade a pior coisa possível.
O Maestro, por outra parte, ficou impressionado pelo como se pareciam os dois: aquele homem certamente podia passar pelo pai do miudo. O Passarinho era uma escolha obrigatória. Mas, com o senhor X podia vender o miudo mil vezes e ninguém poderia imaginar que não se tratava de pai e filho.
- Porque é que está amordaçado? perguntou o senhor X.
- É uma estranha história, disse o Maestro. Este miudo quando fala, faz as pessoas adormecerem. Já me escapou uma vez assim.
- É verdade? disse o senhor X. Então se trata de um menino esperto e forte.
- Quanto a isto...
- Acho que o menino dá para o meu cliente.
- Claro que vai dar, disse o Maestro. É um menino saudável. E quando vamos ter o dinheiro?
- Hoje mesmo eu falo com o cliente e depois arranjamos tudo. Acho que amanhã estaremos prontos. Tenho também de falar com o Talho. Ele vai fazer a operação. Em todo caso, vou telefonar.
- Como o senhor quizer...
- Até amanhã, então.
- Até amanhã. Obrigado.
O senhor X saíu da casa e foi para o seu carro. Mais uma missão com sucesso. O menino era ideal. Parecia saudável. Todos os seus órgãos estariam em óptima condição. Oxalá, porém, não tivesse aqueles olhos tão grandes. O senhor X ficou pensativo. Era como se o olhar do menino fosse cravado na sua mente.
Abriu a porta do carro e sentou-se dentro. Se não fosse aquele menino, seria um outro, pensou. Isto era a pura verdade. Era também verdade que com a comissão que ia cobrar, conseguiria comprar uma casa de campo.
No assento do lado havia a fotografia da casa que ia comprar. «Que bonita!» pensou. «E dentro de pouco, será mia.» Era verdade que o negócio dos meninos raptados não era agradável. A fim de contas, eram crianças inocentes. Mas, era verdade também que aquele negócio pagava muito bem mesmo.
O senhor X pôs o carro em movimento e desapareceu a grande velocidade.

                                25. OPERAÇÃO NOCTURNA
                                       
A Florida olha para o seu relógio. São as sete. Ainda? pensa. Será que não funciona? Desde que entrou no carro do comissário Santos, parece-lhe que passou uma eternidade. Mas os ponteiros parecem parados, o tempo decidiu a andar mais devagar, justamente quando deveria correr, voar como um furacão.
- A senhora está bem? pergunta-lhe o comissário.
- Sim, estou bem. Que horas são?
- São as sete. Falta meia hora.
Então, o relógio funciona. Meia hora. Trinta minutos. Mil oitocentos segundos. Uma eternidade. E os ponteiros mostram as sete e um.
Como decidiu falar ao comissário, não sabe explicar, como não sabe se fez bem ou mal. Os raptores disseram para ela não implicar a Polícia. O seu menino está em perigo.
- Não se preocupe, diz o comissário como se estivesse a ler o seu pensamento. Os nossos agentes já estão no lugar onde os raptores disseram que iam deixar o seu filho. Quando o virem, avisam-nos de seguida.
O comissário explicou-lhe o plano cem vezes. Quando os raptores apanharem o saco com o dinheiro, eles vão segui-los para depois os prender. Entretanto, os policías que estão no lugar onde os raptores disseram que deixariam o Joãozinho, vão apanhá-lo e conduzi-lo ao posto de Polícia, onde vai esperar para a sua mãe. Tudo irá sobre rodas, como disse o comissário. Mas ela duvida.
Sete e cinco.
Como estará o seu menino? Mais magro, certamente. Como o terão tratado aquelas pessoas? No telefone não se ouviu bem. Parecia muito assustado, pobrezinho! Vinte e cinco minutos mais, que martírio!
- Lopes, tudo bem? pergunta o comissário no rádio.
«zzz......cr..cr...aqui Lopes....cr...tu....bem...cr....cr...zzzzz....» ouve-se no rádio. «....inda não .....pareceu....guém. Tudo.....quilo...cr....»
- Repita, por favor, diz o comissário.
«...cr...não apareceu......guém...»
- Entendido. Muito bem, continue.
À estas horas já é noite e não se vê bem. Aliás, a noite é muito escura. A lua parece ter escondido para não ver. Por outro lado, a rua não tem muito tráfico, nem passam muitas pessoas. Não será muito difícil localizar o raptor, ou será?
- A senhora quer um café? pergunta o comissário. Ainda temos tempo.
- Não, obrigada. Estou bem.
Está bem? Tem dor de cabeça. Os pensamentos dentro do seu cérebro são como um enxame de moscas, ou melhor, como um enxame de vespas, que a picam continuamente.
Sete e dez.
Se pudesse fechar os olhos e abri-los outra vez às sete e meia!
Quem disse que quando passamos bem o tempo voa, mas quando enfrentamos uma situação desagradável, tudo parece durar mais? Pois, aquela pessoa tinha razão.
Então, deve fingir que passa bem. Deve pensar numa coisa agradável. Imagina que a meia hora já passou, tudo correu bem, e ela está no posto da Polícia onde está o Joãozinho. «Aqui está», dizem-lhe. «Abra a porta».
Abre a porta. O Joãozinho está lá, sim, não lhe mentiram. Está lá, com os seus cabelos de trigo e os seus olhos azuis. Quando a vê, ele corre aos seus braços. Que felicidade! Além dos seus braços, encheiou-se o seu coração também. Não quer deixá-lo. «Mãe!» diz o menino. «Estamos juntos outra vez!» «Sim, meu querido», diz ela. «E vamos ficar juntos para sempre!»
Entra o comissário. «Pois», diz, «a senhora viu que não tinha de preocupar-se? Tudo foi bem, exactamente como o tínhamos planeado». «Sim, senhor, muito obrigada», responde ela. «Não sei como agradecer-lhe». «Não é preciso fazer nada. Só fizemos o nosso trabalho. Agora pode voltar para sua casa. Passe bem e tenha um ano novo muito feliz». «Igualmente. Que Deus lhe bendiga.»
Vão para casa. Lá, o Joãozinho vê o pacote que está na sua cama. «Ó, mãezinha, o que é isto?» «Bom, filhinho, isto é o teu presente para o ano novo». «Mas ainda é cedo. O pai Natal não chegou. Faltam tantos dias.» «Pois, este ano, só para ti, fez uma excepção. Trouxe-te o teu presente mais cedo». «Que bom!» diz o Joãozinho e começa a abrir o pacote. «O que é? O que é?» O Joãozinho despedaça o papel e aparece o carro vermelho. «Um carro vermelho!» diz o menino e fica com a boca aberta. «E é novo, não é?» «Sim, meu querido» diz a Florida. «É novo e é para ti». «Obrigado, mãezinha!» diz o Joãozinho e abraça-a com ambas as mãos.
- Atenção, diz o comissário. Uma pessoa está a aproximar-se do contentor. Todos prontos!
São as sete e trinta e dois. Por entre a escuridão, uma sombra move-se com cuidado para o contentor. Não se vê. As luzes dos carros estão apagadas.
A sombra pára um minuto. Depois, abre o contentor e apanha um saco. Será o saco com o dinheiro. A sombra vai-se embora.
A Florida não ouve nada. O seu coração bate tão forte que sente que todos podem ouvi-lo, incluso a sombra. «Silêncio», pensa.
- Peixinho, não o perca.
«Sim, comissário, cr...cr.. se preocupe», ouve-se no rádio.
- Onde vai?
«Há um carro.... ul. Parece que .... uma pessoa. Sim, entra ....carro azul!»
- Entra no carro azul, disse?
«cr...sim»
- Vamos, diz o comissário.
Mas, naquele mesmo momento, um camião pára em frente do carro do comissário Santos.   

                                      26. A SORTE DO LADRÃO
                                     
O carro azul corria a grande velocidade.
- Cuidado, disse o Maestro. Não queres que morramos, suponho.
- Não te preocupes, disse o Passarinho. Sou um condutor óptimo. Quando era jovem queria ser piloto e correr em ralis. Aliás, tu não disseste que a mãe do menino podia ter avisado a Polícia?
- É provável, sim. Mas isto não é razão suficiente para morrermos.
- Pois, se a mãe avisou a Polícia, temos de escapar, não é?
O Maestro não disse nada.
- Então, temos de correr, continuou o Passarinho. Corramos, então.
- Mas com cuidado, Ayrton.
- Sim, patrão.
Passaram pelas ruas escuras da cidade, procurando evitar os postos de Polícia.
- Depois de hoje, eu não vou continuar. Parto esta noite mesmo. Não quero ter nada com a morte do menino, disse o Passarinho.
- Podes fazer o que queiras. Em todo caso, eu não esperava nada mais de ti. Não posso colaborar com uma pessoa que está a pensar continuamente no seu «pequeno Tomás».
- Não falarias assim se tu também tivesses um filho...
- Já falámos neste assunto. A tua vida é tua e a minha é minha.
- Pois é.
Os dois homens ficaram calados durante o resto do percurso e nem trocaram uma palavra quando chegaram ao seu esconderijo. Estacionaram, saíram do carro, olharam para todos os lados: não havia ninguém. Tinham conseguido escapar.
Entraram no esconderijo com o saco nas mãos. Fecharam a porta e esvaziaram o saco no chão. Quanto dinheiro havia!
- Contamos, dividimos e depois tu vais embora, como disseste, disse o Maestro.
- Está bem, disse o Passarinho. Espero que o dinheiro não seja marcado. Não gostaria de ficar preso.
- Vamos ver, disse o Maestro e começou a examinar as notas. Não, as notas parecem claras, disse depois de pouco.
- Vamos contar, então. Cinquenta, cem, cento e cinquenta, duzentos...
Frente ao esconderijo, um carro parou. Um homem alto, magro e bem vestido saíu do carro e foi até à porta. Levantou a mão e bateu.
O Maestro e o Passarinho ficaram imóveis. Seria a Polícia?
O homem de fora bateu outra vez.
- Maestro, disse a voz alta, abra a porta.
O Passarinho olhou para o Maestro.
- Sabem quem és, disse. Chamam-te pelo teu nome!
- Passarinho! ouviu-se o homem outra vez.
- Conhecem a mim também!
- Sou eu, disse então o homem, X!
Graças a Deus! Não era a Polícia, era o senhor X. Mas não era cedo? O Passarinho meteu o dinheiro no saco outra vez e escondeu o saco por baixo da cama e o Maestro foi até à porta e abriu-a.
- Porque não me abrem? disse o senhor X, quando entrou no quarto. Não me ouvem?
- Não o esperávamos tão cedo, disse o Maestro. Desculpe.
- Tinha dito que voltava hoje por volta das oito e meia, e são as nove menos vinte, disse o senhor X. Não vim mais cedo, então.
- Sim, o senhor tem razão, desculpe, disse o Maestro. Então, tudo está pronto?
- Sim, tudo. O cliente já deu o dinheiro, o Talho está a esperar o menino e a clínica está a esperar o órgão. Tudo está em ordem.
- Onde está o dinheiro? disse o Maestro. Não é a hora do senhor dar o dinheiro que prometeu?
- Sim, claro. O dinheiro está no meu carro. Vou trazê-lo agora mesmo. Os senhores, entretanto, preparem o menino. Não temos tempo a perder.

                                   27. UMA CAÇA TERMINADA
                                     
O senhor X abriu a mala. Era cheia de dinheiro. O Joãozinho nunca tinha visto tanto dinheiro junto. Não pôde dizer nada, porém, porque estava amordaçado outra vez.
- É a soma que concordámos? perguntou o Maestro.
- Se não confiam em mim, podem contar, disse o senhor X. A única coisa que posso dizer é que eu mesmo contei o dinheiro.
O Maestro aproximou-se da mala. Tocou algumas notas e levantou-as para ver se havia dinheiro por baixo. Podia haver papel em vez de dinheiro, mas não havia. Tudo parecia bem.
- Não vou contar agora, disse. Mas se houver algum erro, não vamos colaborar outra vez, fique a saber.
- É lógico, disse o senhor X. Posso levar o menino, agora? Já é tarde e o Talho está a esperar. E o cliente também.
- Sim, claro que o pode levar, disse o Maestro.
O Passarinho estava no outro quarto para não ver.
O senhor X estendeu a mão e agarrou o Joãozinho.
- Mmmmmm, disse o Joãozinho e procurou evitar a mão do senhor X. Aonde o levavam? Porque não o deixavam?
- Vem, menino, disse ele. Vamos a um lugar bonito, vais ver.
- Mmmmm, disse o Joãozinho outra vez.
O senhor X abriu a porta e saíu, agarrando o Joãozinho com força. Olhou para todos os lados. A rua estava deserta. Foi para o seu carro, abriu a porta e empurrou o menino para dentro. Foi então, quando uma década de luzes encenderam-se, todas viradas para o carro do senhor X.
- Alto, ouviu-se uma voz.
Ao mesmo tempo, o Maestro e o Passarinho ouviram golpes na sua porta.
- Abram, ouviu-se uma voz. Polícia.

                                    28. VELHOS CONHECIDOS
                                        
Como a Polícia os encontrou, nem o Maestro nem o Passarinho podiam imaginar. A resposta, porém, era simples. O dinheiro que estava no saco era dinheiro da Polícia, e os policias que tinham preparado o saco tinham posto um emissor dentro do saco. Assim, quando os raptores escaparam, os policias puderam segui-los, seguindo o sinal do emissor.
Quando conseguiram encontrar o esconderijo, o comissário Santos viu o carro estacionado do senhor X e deu ordens para os policias se esconderem e esperarem um bocadinho antes de intervir. Tinha razão, porque uns minutos mais tarde, o senhor X saíu, foi para o seu carro e voltou para o esconderijo com uma mala. O comissário Santos pensou que podia haver dinheiro na mala. Então, os raptores iam vender o menino. Era hora de intervir, mas, para ter os resultados melhores teve de esperar um bocadinho mais. Queria que ficasse bem claro que se tratava de uma transacção ilegal. Queria prender o homem desconhecido com as mãos na mercadoria e os raptores com as mãos no dinheiro. E foi exactamente assim como foram presos todos.
Quando os criminais foram presos, o comissário Santos saíu do seu carro e com ele saíu a Florida, que correu para o carro onde estava o Joãozinho. Mãe e filho abraçaram-se e estavam muito felizes.
Os policias passaram frente da Florida e do Joãozinho, levando consigo os três presos. O Passarinho olhou o Joãozinho nos olhos, como se lhe pedisse perdão. O Maestro olhou-o também, mas não havia nenhum sentimento no seu olhar. Depois deles, vinha um policia com o saco do dinheiro e com a mala também.
A Florida estava a olhar também os criminais que lhe tinham privado o seu filho durante tantos dias. Estava tão feliz que não podia sentir nada por eles. Quando, porém, apareceu o senhor X, a Florida ficou petrificada, isto é quando uma pessoa fica imóvel.
- João, disse e desmaiou.
O senhor X também ficou estupefacto. Olhou para a Florida, depois para o Joãozinho, outra vez para a Florida, que estava no chão... Estes olhos, pensou, estes olhos cravados na sua mente não eram os olhos do menino, eram os olhos da mãe, que ele, embora pensasse ter esquecido, levava sempre consigo. E o menino, então...
- Florida, disse a voz baixa, como se falasse para si mesmo.
Filho, pensou.
Mas não teve mais tempo, porque o levaram para um carro da Polícia.
Entretanto, a Florida recobrou consciência e era como se tivesse acordado de um sonho. Tinha visto o João ou não o tinha visto?
- Mãe, estás bem? perguntou o Joãozinho.
- Sim, querido. Agora que estou contigo, estou muito bem. Vamos?

                       29. UM FIM FELIZ, MAS NÃO PARA TODOS
                                          
O fim da história já todos o podem imaginar. O Maestro, o Passarinho e o senhor X, isto é o João da África do Sul (que na realidade era o João do Brasil, porque tinha ido ao Brasil e não à África do Sul, como tinha dito à Florida), foram encarcerados, em prisões diferentes. Foi provado que o João do Brasil, ou senhor X, era uma ligação portuguesa muito importante do bando brasileiro, e deu muitas informações à Polícia sobre o bando criminal. Todas as ligações portuguesas foram descobertas e o comissário Ramos foi promovido. O comissário Santos, também, recebeu uma menção honrosa, por ter ajudado na solução do caso.
A mulher do Passarinho separou-se dele e foi para o Brasil, onde o pequeno Tomás aprendeu a falar com acento brasileiro. A Polícia devolveu o dinheiro do casal Rodrigues. A senhora Begonha, então, sentiu muito aliviada por ter as suas poupanças íntegras e continuou a asistir telenovelas, pensando que algumas vezes na vida real também há fins felizes.
E o que aconteceu com o Joãozinho? Ficou a saber que o senhor X era o seu pai? A Florida disse-lhe a verdade, ou preferiu ficar calada sobre o assunto?
Isto, sinceramente, não o sei. Somente sei que, quando os dois se encontraram, e depois da Florida ter agradecido ao comissário Santos tudo o que ele tinha feito por ela, os dois voltaram para casa. Lá, o Joãozinho viu o pacote que estava na sua cama.
- Ó, mãezinha, disse, o que é isto?
- Bom, filhinho, respondeu ela, isto é o teu presente para o ano novo.
- Mas ainda é cedo. O pai Natal não chegou. Faltam tantos dias.
- Pois, este ano, só para ti, fez uma excepção. Trouxe-te o teu presente mais cedo.
- Que bom! disse o Joãozinho e começou a abrir o pacote.
A Florida estava a olhá-lo, muito comovida.
- Um carro vermelho! disse o menino e ficou com a boca aberta. E é novo, não é?
- Sim, meu querido, disse a Florida. É novo e é para ti.
- Obrigado, mãezinha! disse o Joãozinho e abraçou-a com ambas as mãos.


FIM