domingo, 22 de setembro de 2013

1. Era uma vez



Era uma vez uma menina muito bonita e muito ingénua, que se chamava Florida Pestana. A Florida era tão bonita que parecia como uma flor, cheia de perfumes. Aliás, por pura coincidência, a Florida tinha umas pestanas longuíssimas, como fios de seda. Ora, muitos vão pensar que a Florida, sendo tão bonita, era uma pessoa muito sortuda, mas, infelizmente não era assim. Porque a Florida perdeu os seus pais quando era muito pequena, e quando dizemos «perdeu» na verdade queremos dizer que morreram, mas não o dizemos para os mais pequenos não ficarem muito tristes. Mas vocês já são grandes, alguns já vão à escola, por isso podem ouvir a verdade toda.
Então, os pais da Florida morreram, já se sabe, e a pobre menina ficou sem família. A vida é dura e difícil para as pessoas que estão sozinhas no mundo, isto também é um facto, e a Florida teve uma vida difícil, mas conseguiu crescer e tornar-se uma mulher muito amável.
Foi então quando a Florida conheceu o João, um jovem muito bonito também, loiro como o trigo em Júnio e agradável como um agasalho nos dias frios de Janeiro. A Florida apaixonou-se por ele e ele prometeu-lhe uma vida feliz, coisa que ninguém conhece bastante para saber como é. Fizeram muitas coisas os dois juntos e um dia nebuloso a Florida descobriu que estava grávida. Isto é quando uma mulher tem um bebé dentro da barriga. Porque muitos dizem que a cegonha traz os bebés, que parcialmente podia estar certo, dado que, metaforicamente, um pássaro traz os bebés (podem buscar a palavra «metaforicamente» num dicionário), e outros dizem que os bebés vêm da França, coisa que certamente não está certa, dado que a França exporta muitos productos mas não exporta bebés.
A Florida ficou muito surpreendida quando viu que estava grávida, porque ela acreditava também na história da cegonha, e não era como vocês que sabem muito bem que os bebés vêm da barriga da mãe. A pobre menina não sabia o qué fazer mas achou boa ideia informar o João sobre o assunto.
Foi então quando o João lembrou que tinha de fazer uma viagem urgente à África do Sul por assuntos familiares, mas prometeu-lhe que ia voltar pronto. A Florida despediu-se de ele cheia de lágrimas e de esperanças e passou duas semanas encerrada no seu quarto, lendo as cartas de amor que o João lhe tinha escrito.
Mas o João não voltou. E os meses passavam e a barriga da Florida crescia como um balão. E foi daquele balão que veio no mundo (neste mundo, quer dizer) o filho da Florida. No dia 13 de Abril a Florida tornou-se mãe e o João tornou-se filho dela. Porque a menina ingénua ainda amava o João e, para o ter de alguma maneira perto dela, deu o nome dele ao seu filho. Mas, infelizmente, não sabia o apelido do pai do Joãozinho, por isto foi que o João só tinha um apelido e este era o apelido da Florida, quer dizer Pestana.
Ora muitos vão dizer que a aventura do pequeno João Pestana começa aqui, dado que cada pessoa que nasce enfrenta um desafio, mas eu, já conhecendo a história, digo-vos que a grande aventura dele ainda não começou. Tenham paciência, então, porque, como o provérbio diz, saber esperar é uma grande virtude.
O filho da Florida, então, se chamou João Pestana e era um menino excepcional. Do pai tinha o cabelo de trigo e da mãe tinha o coração de oiro. Mas o pequeno João tinha também um poder propriamente seu: tinha uma voz muito doce e quando falava provocava sono às pessoas que o ouviam. Naturalmente, ninguém conhecia este poder quando ele era muito pequeno, porque todo o mundo sabe que os bebés não falam. Nem sequer ele o sabia.
O Joãozinho era um bebé muito tranquilo e gostava muito de dormir. Às vezes sonhava com caramelos, casinhas de açúcar e flores de chocolate e, então, no seu rosto rosado aparecia um sorriso grande. Às vezes sonhava com tempestades e céus cinzentos, escuros, e acordava chorando. Porque o Joãozinho tinha medo das tempestades e dos trovões. Quando o tempo era muito mau e o João chorava por causa dos trovões, a Florida secava-lhe os olhos, explicando-lhe que não devia ter medo dos trovões porque são o tambor do céu e que quando se ouve o tambor do céu é porque os anjos têm festa e dançam.
Os dois viviam com muita pobreza mas com muito amor também. Quando não tinham bastante para comer, ela fingia que já tinha comido, para deixar ao seu filho a pouca comida que havia. Bordava a ropa dele com jotas de várias cores, cantava-lhe cançãozinhas infantis que ela mesma inventava por ele, contava-lhe contos de princesas encantadas e dragões de hálito ardente, tudo o que ela podia imaginar. A pobrezinha, procurava dar-lhe toda a felicidade que ela nunca tinha experimentado.
Pronto, o Joãozinho proferiu as suas primeiras palavrinhas, pois começou a dar os seus primeiros passos, primeiro como um cãozinho, gatinhando com grande velocidade por todo o lado, pois como uma pessoa de verdade, com os pés, baloiçando no início e gradualmente ganhando confidência.
A Florida era muito feliz mesmo, e cada dia acordava cheia de curiosidade para ver qual seria a próxima coisa engraçada que o seu filhinho fazia. Como cada mãe respeitável, queria o melhor para ele e procurava ajudá-lo para no futuro ele ter uma vida mais fácil do que a vida dela.
Por isto, quando o Joãozinho chegou à idade precisa, a sua mãe inscreveu-o na escola do bairro. Porque, como se diz, a educação abre portas, quer dizer que quando uma pessoa estuda, tem mais oportunidades na vida.
O primeiro dia de escola foi muito difícil para os dois. O Joãozinho chorava levemente, e o seu rosto era vermelho por chorar tanto. A Florida continha-se porque era a maior e os maiores (isto o digo porque muitos não o sabem), mesmo quando parecem que não sentem nada só o fazem para não parecer débeis. A pobrezinha, sorria por fora mas, por dentro chorava sem parar.
O Joãozinho sentia-se sozinho porque não conhecia ninguém. Escolhiu uma carteira num canto da aula, sentou-se e apoiou a sua cabeçinha loira com ambas as suas mãos, olhando melancolicamente para o chão. Imaginava que os azulejos do chão eram como um tabuleiro de xadrez, e começou a imaginar os peões alegres correndo por todo o lado, os bispos austeros praticando artes marciais, as torres fortes, o rei bondoso, a rainha poderosa e os cavalos imprevisíveis galopando entre as carteiras, sem cavaleiros, relinchando de vez em quando.
A situação tornou-se muito divertida quando começaram as batalhas entre os peões. Logo, quando o rei foi morto por um peão atrevido, a rainha não mostrou nenhum sinal de preocupação por ele, e o Joãozinho ficou muito estranhado. A batalha continuava diante dos seus olhos, quando o nosso amigo ouviu que a rainha estava a chamá-lo pelo seu nome. Mas, como podia a rainha saber o nome dele? Que mistério! Os peões começaram a rir-se. Foi então quando o Joãozinho abriu os olhos e viu que a professora estava à sua frente, olhando-o e chamando-o pelo seu nome. Os outros alunos estavam a rir-se, exactamente como os peões. O quê tinha acontecido?
O coitadinho tinha adormecido sem dar conta, e quando a professora entrou na aula, ele já estava a dormir, com a sua cabeçinha loira apoiada sobre a carteira. Que vergonha! Um homem já, de 6 anos de idade, a dormir durante a aula! Tornou-se vermelho como uma papoila. Os outros alunos não paravam de rir. Sentiu vontade de chorar mas, já o dissemos, era um homem, tinha 6 anos. Preferiu sofrir por dentro.
A professora, que era muito simpática e gostava muito do seu trabalho, disse aos alunos para deixarem de rir e deu ao Joãozinho as boas-vindas. Mas, quando o chamou pelo seu nome inteiro, os alunos desataram a rir outra vez e, para falar a verdade, desta vez riram mais. Até que começaram a gritar ritmicamente «João Pestá-na! João Pestá-na! João Pestá-na!». Porque este nome, quer dizer o nome dele, concordava com o episódio anterior. Foi assim como o nome João Pestana em vez de ser somente um nome, começou a ser nome e apodo ao mesmo tempo. E não havia maneira de mudar a situação.
Muito pronto, toda a escola sabia dele e do episódio e, muitas vezes, alunos de outras aulas que ele não conhecia, chamavam-no pelo seu nome inteiro, rindo e mostrando-o com o dedo índice aos outros alunos, coisa que não é sinal de pessoa educada. Naqueles momentos, o pobre menino sentia-se muito mal e, como era tímido, ia embora e escondia-se no retrete até o intervalo terminar.
A situação piorou mais tarde, quando o rumor que o João Pestana não tinha pai correu por toda a escola. Isto, como sabemos nós, não era verdade, porque já sabemos que o pai do Joaõzinho era o João da África do Sul e, mesmo se não o soubéssemos, sabemos muito bem que todas as crianças têm pai e mãe, só que alguns pais e mães vivem longe ou já não vivem mais. Aliás, segundo a igreja, todos somos irmãos porque somos filhos de Deus, não é assim?
Mas os alunos da escola talvez não o soubéssem. Pouco a pouco, começaram a chamá-lo «bastardo». O Joãozinho não sabia o que significava esta palavra, nem tinha dicionário em casa para a buscar, mas sentiu que não era coisa boa. Se vocês buscarem a palavra no dicionário, vão ver que tinha razão. É uma palavra muito cruel para ser dirigida a qualquer pessoa, muito menos a uma criança tão frágil como ele. Eu, pessoalmente, não a tenho usado nunca. A única razão pela qual me referi a ela, foi para vos avisar. Porque para evitar um perigo é preciso saber qual é o perigo. Agora que vocês conhecem esta palavra, tenho a certeza que, como meninos bem educados, não a vão usar nunca.
O Joãozinho sentia muito infeliz, mas não dizia nada à sua mãe porque não queria dar-lhe nenhum desgosto. Felizmente, o intervalo não durava muito, e a maior parte do dia passava-a na aula, aprendendo muitas coisas que nem sequer imaginava. Pouco a pouco aprendeu coisas como o alfabeto, os números, os animais, as árvores, e quanto mais aprendia mais ainda lhe faltava para aprender. Porque os conhecimentos não terminam nunca. E se vocês podem guardar um segredo, ei-lo: ninguém conhece tudo, nem sequer os nossos pais. Fiquem também a saber que vale a pena aprender mais coisas. Mas não vou dizer mais porque já disse mais do que devia. Há coisas que vocês têm de descobrir sozinhos. Sinto muito.
O Joãozinho gostava muito da escola e estudava sempre. Não houve nem sequer um dia que ele foi à escola sem ter estudado nada, como fazem muitos meninos e meninas. Mas havia um problema. Quando o nosso amigo abria a boca e começava a falar, todos aqueles que o ouviam adormeciam, incluso a professora. Um dia a professora pediu-lhe para ler uma frase que estava escrita no quadro-negro e todos dormiram por dez minutos. Um outro dia a professora pediu-lhe para falar sobre o que tinham aprendido no dia anterior, e todos dormiram até ao intervalo seguinte. Depois disso, a professora nunca mais lhe pediu para falar na aula, embora ele, como aluno bom que era, levantasse o dedo índice pedindo licença para falar. Mas, mesmo assim, o menino não deixou de estudar. Enfim.
A Florida estava muito orgulhosa do seu filhinho, como todas as mães o são, e esperava algum dia poder oferecer-lhe muitos presentes. Mas, já o dissemos, era muito pobre e não podia comprar-lhe quase nada. Porém, isto não significa que não pudesse dar-lhe um presente estupendo. Porque, como disse uma pessoa muito erudita, as coisas mais caras são aquelas que não custam nada. Assím, um dia de Dezembro, com o Natal aproximando e as montras encheando-se com decorações natalícias, a Florida foi à escola do Joãozinho, e quando ele saíu, ela abraçou-o e disse-lhe que iam passar o resto do dia juntos. Que presente tão caro! Que alegria tão grande! O Joãozinho estava muito contente mesmo.
Caminharam pelas ruas da cidade, olhando ora aqui ora ali, e falando sem parar, porque a Florida era imune ao sono que o seu filho provocava aos outros, quer dizer que ela não se adormecia quando o pequeno João falava. Então, os dois comunicavam entre si perfeitamente.
Viram montras com ropa para mulheres e para crianças, viram montras de pastelarias com apetitosos bolos de chocolate, perfumados biscoitos de canela em forma de estrelas e deliciosos bolos-reis, e, naturalmente, viram muitas montras com brinquedos de todo tipo: bonecas de ropa elegante, casas de bonecas enormes, onde podia caber uma criança de três ou quatro anos – mas o Joãozinho certamente não cabia –, carritos de várias cores, cavalinhos de várias dimensões... O menino ficou entusiasmado. Nunca na sua vida tinha visto tantos brinquedos juntos.
Então, a Florida teve uma idea. «Porquê não vamos ao centro comercial?» propôs. «Disseram-me que há uma enorme árvore decorada com caramelos, e, no sector dos brinquedos, há um castelo enorme com bonecos grandes que movem sozinhos». O Joãozinho abriu os olhos tão grandes, que a sua mãe nunca tinha visto. «Siiiiiiiiiim», disse em voz tão alta que chegou até ao céu. Bom, até ao céu não, mas seguramente chegou muito alto. E certamente chegaria até mais alto, se o nosso amigo soubesse que a sua grande aventura estava a aproximar, galopando como um cavalo selvajem.
Apanharam o autocarro e, depois de um pequeno percurso entre o barulho do tráfico, que ao Joãozinho pareceu infinito, chegaram ao centro comercial. O Joãozinho nunca tinha visto coisa semelhante na sua vida. Quanta gente, meu Deus! Alguns estavam sozinhos, outros estavam com os seus filhos ou com os seus amigos, e todos tinham sacos com presentes nas mãos. No ar ouvia-se música alegre da época. Havia também tantas cores, e tantas luzes acesas! Era como um conto infantil.
Foi então quando o pequeno João perdeu a sua mãe. Ora, quando dizemos que a perdeu, desta vez estamos a falar literalmente, quer dizer que o Joãozinho perdeu a sua mãe e não a podia encontrar em nenhuma parte do centro comercial. O mesmo aconteceu com a Florida: perdeu o seu filhinho e não podia encontrá-lo.

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