domingo, 29 de setembro de 2013

4. Prisioneiro



A porta estava aberta. Entraram num quarto pequeno, escuro e sujo, quase vazio. Só havia duas cadeiras, uma mesa e uma cama pequena. Num canto, no chão, havia também um telefone. Funcionaria? O quarto havia uma janela e duas portas mais. Cheirava a mofo. O Maestro abriu uma das portas e disse ao Joãozinho para entrar. Ele obedeceu e quando entrou, o homem fechou a porta à chave. O Joãozinho ficou sozinho.
- Fica tranquilo, disse o Maestro. De aqui não escapas.
Tinha razão. O quarto era ainda mais pequeno do que o outro e não tinha janelas. Só havia uma cama pequena desarrumada, e uma bandeja com um copo e um prato vazios no chão. Parece que ele não era o primeiro residente do lugar.
 Arrumou a cama e sentou-se. Estava muito frio e não havia calefacção. O coitadinho começou a tiritar. Cobriu-se com o cobertor, mas mesmo assim não conseguia aquecer-se. Que horas seriam? Se agora estivesse em casa, já estaria na sua cama, teria bebido um copo de leite quente e a sua mãezinha estaria a contar-lhe uma história engraçada como só ela sabia contar. Ouviou a outra porta do lugar abrir. A porta depois fechou e no quarto contíguo houve vozes. Obviamente, o Maestro não estava sozinho. O Passarinho teria voltado. Procurou perceber o que estavam a dizer, mas estavam a falar baixo e não conseguiu perceber nada.
Mas, pronto os dois homens começaram a discutir e o tom da conversa subiu. O Joãozinho pegou a orelha na porta para poder ouvir melhor.
- Como que não tem cliente? perguntava o Maestro.
- Disse-me que ultimamente não há mercado para crianças tão grandes.
- Como que não há mercado? O menino não é tão grande. Não terá mais de cinco anos.
- Mesmo assim, disse que agora só se vendem bebés de alguns meses e não crianças que vão à escola. Aliás, há também o mercado de China e é muito difícil combater os chineses, disse.
- Sabes o que digo eu? Que o tipo está a brincar connosco. Não nos disse no outro dia que se conhecíamos algum menino, porque tinha um cliente exigente que não podia esperar? Pois, onde está aquele cliente? Sumiu?
- Podia ter mentido...
- Ou podia estar à procura de outros fornecedores, mais baratos.
- Mais baratos do que nós não há, seguro.
- E o chineses? Porquê será que se referiu aos chineses? Achas que foi pura casualidade?
- Sei lá...
- Sabes lá, sabes lá, está certo que não foi. Pensa nisto: na China, cada dia nacem miles de bebés. Aqui, quantos bebés nacem por dia?
- Sim, parece lógico, mas mesmo assim penso que o Raposo somente perdeu o cliente...
- Não sejas tão estúpido, Passarinho. O Raposo quer sair à francesa, mas não sabe bem com quem se mete. Ele também tem patrão. Ó Passarinho, nem podes imaginar aonde posso chegar. Vou dar ao nosso amigo uma ensinadela que nunca vai esquecer, descuida-te.
- E o que vamos fazer com o menino?
- Procuro eu o cliente.
- Tu?
- Sim, não achas que sou capaz? Mas, antes de tudo, quero saber uma coisa. Ó, tu, ranhoso!
O Joãozinho apanhou um susto! O Maestro já estava atrás da porta. O nosso amigo quase ficou paralisado. Por pouco não o apanharam com a orelha pegada na porta!
- Diz-me lá, disse o Maestro quando abriu a porta. Quantos anos tens?
Que devia responder? A sua mãe dizia-lhe sempre que devia dizer a verdade, mas aqueles homens, como parecia, queriam vendê-lo e, como disse o Maestro, não havia mercado para crianças grandes. Então, decidiu dizer uma mentira para se salvar.
- Não ouves? perguntou o Maestro. Perguntei-te uma coisa.
- Tenho dez anos, disse ele porque dez anos lhe parecia uma idade bastante grande.
- Não digas parvoíces. Não pareces ter mais de cinco.
O Joãozinho pensou insistir na sua mentira.
- Tenho dez anos, repetiu. Vou cumprir dez dentro de três meses.
- Achas que és tão esperto? perguntou o Maestro, bocejando um bocadinho. Pois sei eu uma maneira de saber a tua idade. E sabes como? Os teus dentes não mentem, miudo. Vão dizer-me toda a verdade sobre a tua idade. Abre a boca para eu ver.
- Pois, disse o Joãozinho, a verdade é que tenho oito anos.
- Então, já começaram os saldos? Mesmo assim, abre a boca.
Agarrou-lhe a cabeça e abriu-lhe a boca com as suas mãos que eram muito fortes.
- Pois sim, disse com prazer. Os dentes novos de frente já aparecidos, mas ainda não completamente. Cinco ou seis anos, ao máximo.
O Joãozinho ficou triste, mas, por outro lado, aprendeu uma coisa: que além dos cavalos, os dentes servem também para calcular a idade das crianças pequenas.
O Maestro saíu e fechou a porta outra vez.
- Amanhã vou procurar um cliente, disse ao Passarinho.
O Joãozinho ficou sozinho outra vez, mas foi para uns minutos só. A porta abriu outra vez e apareceu o Maestro, com uma sandes de fiambre e um copo de leite nas mãos.
- Toma, disse-lhe. Não queremos deixar-te morrer de fome.
- Tenho frio, disse o Joãozinho.
O Maestro suspirou.
- Quando digo eu que as crianças são um mau deste mundo tenho razão. Filhos mimados, todos! «Tenho frio, tenho fome, quero isto, quero o outro...» E eu não tenho muita paciência.
O Passarinho apareceu na porta com um cobertor nas mãos.
- E eis o anjo bom, já na porta, com um cobertor para o nosso príncipe não sentir frio! Tu não és homem!
O Maestro, zangado como era, saíu do quarto e o Passarinho deixou o cobertor sobre a cama. «Boa noite» disse a voz baixa e saíu ele também. Depois, fechou a porta à chave.
- E não faças barulho, ouviu-se a voz do Maestro, ou sei eu bem como fazer-te calar.
O Joãozinho ficou sozinho, e desta vez seria para toda a noite. Bebeu o leite, que era frio, e comeu a sandes, que não era muito fresca. Depois, deitou-se na cama e cobriu-se com os dois cobertores. Menos mal que havia luz no quarto. Assim, pelo menos, havia uma fonte de calor.
Foi difícil acalmar. Era a primeira vez que ficava sozinho de noite e a presença dos dois homens tão perto dele não era nada confortante. Aliás, tinha medo dos ratos. E se naquele lugar, que era tão sujo, havia ratos? Oxalá não houvesse. O Cristovão Colombo, alcunha do Cristovão Calumba, que era aluno da segunda e que tinha andado pelo mundo, dizia que os ratos podem comer a cara de uma pessoa se têm fome. O Joãozinho cobriu a sua cabeça com os cobertores. Assim, nenhum rato podia comer-lhe a cara. Foi muito tarde quando conseguiu dormir.

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